sábado, 18 de outubro de 2014

12- O Menino Perdido

     Viajaram durante várias horas e então pararam para comer. Enquanto os
homens acendiam as fogueiras e derretiam neve para beber, com Iorek Byrnison
observando Lee Scoresby assar carne de foca, John Faa conversava com Lyra.
– Lyra, você consegue enxergar o instrumento para poder ler? – perguntou.
A lua já havia se posto muito tempo antes. A luz da Aurora Boreal era mais
forte do que o luar, porém inconstante. No entanto Lyra tinha boa visão; enfiando a
mão dentro de suas peles, ela retirou a sacola de veludo negro.
– Consigo, sim – disse. – Mas de qualquer maneira já sei o lugar da maioria
dos símbolos. Que é que vou perguntar, Lorde Faa?
– Quero saber mais sobre como é que estão defendendo esse lugar,
Bolvangar- ele pediu.
     Sem sequer precisar pensar, ela viu que seus dedos moviam os ponteiros
apontando para o elmo, o grifo e o cadinho, e sentiu a mente escolher os significados
corretos como um complicado diagrama em três dimensões. No mesmo instante, o
ponteiro grande começou a dançar, como uma abelha dançando sua mensagem para a
colmeia. Ela observava calmamente, contente em não saber a princípio, mas ciente de
que um significado estava a caminho, e então as coisas começaram a ficar claras. Ela
deixou-o dançar até ter plena certeza.
– É exatamente como disse o daemon da bruxa, Lorde Faa.
Há um pelotão de tártaros vigiando a Estação, e eles colocaram cercas em volta
dela toda. Não esperam ser atacados, é o que diz o leitor de símbolos. Mas, Lorde
Faa...
– Que é, minha filha?
– Ele está dizendo mais uma coisa. No próximo vale, há uma vila perto de um lago
onde as pessoas estão sendo perturbadas por um fantasma.
John Faa sacudiu a cabeça com impaciência e disse:
– Isso não tem importância agora. Deve haver todo tipo de espíritos nessas
florestas. Fale outra vez sobre os tártaros. Quantos são, por exemplo? Como é que
estão armados?
Lyra perguntou obedientemente e anunciou a resposta:
– São 60 homens com rifles, e eles têm algumas armas maiores, uma espécie de
canhão. Têm lançadores de fogo, também. E... todos os daemons deles são lobos, é o
que está dizendo.
Isto causou um impacto entre os gípcios mais velhos, aqueles que já haviam
participado de combates.
– Os regimentos de Sibirsk têm daemons-lobos – disse um. John Faa
acrescentou:
– Nunca vi mais ferozes. Vamos ter que lutar como tigres. E consultar o urso;
aquele ali é um guerreiro esperto.
Lyra estava impaciente e disse:
– Mas, Lorde Faa, esse fantasma... Acho que é o fantasma de uma das crianças!
– Bom, mesmo que seja, Lyra, não sei o que se pode fazer sobre isso.
Lançadores de chamas, 60 rifles... Sr. Scoresby, chegue aqui um instante, por favor.
Enquanto o aeróstata se aproximava do trenó, Lyra saiu de fininho e foi falar com
o urso.
– Iorek, você já viajou por aqui?
– Uma vez – ele respondeu.
– Tem uma aldeia aqui perto, não é?
– Do outro lado da serra – ele disse, erguendo os olhos para o topo por entre as
poucas árvores.
– Fica longe?
– Para você ou para mim?
– Para mim.
– Longe demais. Para mim, nem um pouco.
– Quanto tempo você levaria, então?
– Eu poderia ir e voltar três vezes antes do próximo nascer da lua.
– Porque, Iorek, escute, eu tenho um leitor de símbolos que me diz as coisas,
entende, e ele me disse que tem uma coisa importante que eu tenho que fazer naquela
aldeia, e Lorde Faa não quer me deixar ir. Ele quer viajar depressa, e sei que isso é
importante também. Mas se eu não for até lá e descobrir o que é, podemos nunca ficar
sabendo o que os Papões estão fazendo.
O urso ficou em silêncio. Estava sentado como um humano, as enormes patas
juntas no colo, os olhos escuros fixos nos dela. Sabia que ela queria alguma coisa.
Pantalaimon falou:
– Pode nos levar lá e alcançar os trenós depois?
– Eu poderia. Mas dei a minha palavra a Lorde Faa que ia obedecer a ele e a
ninguém mais.
– Se eu tivesse a permissão dele? – Lyra perguntou.
– Então sim.
Ela virou-se e voltou correndo pela neve.
– Lorde Faa! Se Iorek Byrnison me levar até a aldeia no outro lado podemos
descobrir o que está havendo lá e depois alcançar os trenós. Ele conhece o caminho.
Eu não ia pedir, mas é como o que eu fiz antes, Farder Coram, o senhor se lembra
daquele camaleão. Na hora eu não entendi, mas era verdade, nós descobrimos logo
depois. E tenho a mesma sensação agora. Não consigo entender direito o que o leitor
de símbolos está dizendo, mas sei que é importante. E Iorek Byrnison conhece o
caminho, ele disse que podia ir e voltar três vezes até a próxima lua, e eu estaria em
segurança com ele, não é? Mas ele só vai se tiver permissão de Lorde Faa. Houve um
silêncio. Farder Coram suspirou. John Faa estava muito preocupado, os lábios
apertados. Antes, porém, que ele dissesse alguma coisa o aeróstata interveio:
– Lorde Faa, se Iorek Byrnison levar a garotinha, ela vai estar tão segura quanto
se estivesse aqui conosco. Todos os ursos são honestos, mas conheço Iorek há anos e
nada neste mundo vai fazer com que ele rompa a palavra dada. Se ordenar que ele
tome conta dela, ele vai fazer isto, não se preocupe. Quanto à velocidade, ele
consegue galopar horas seguidas sem se cansar.
– Mas por que não podiam ir alguns homens? – John Faa perguntou.
– Bom, eles iam ter que caminhar, porque não se pode atravessar aquela serra
de trenó – Lyra respondeu. –Iorek Byrnison pode ir mais rápido do que qualquer
homem neste tipo de terreno, e sou bastante leve, de modo que ele não vai se cansar.
E prometo, Lorde Faa, prometo não demorar mais do que o necessário, nem dar
qualquer informação sobre nós, nem correr qualquer risco.
– Tem certeza de que precisa fazer isso? Esse leitor de símbolos não está
bancando o bobo com você?
– Ele nunca brinca, Lorde Faa, e acho que não ia conseguir bancar o bobo.
John Faa esfregou o queixo.
– Bem, se tudo der certo, teremos mais alguma informação. Iorek Byrnison! –
chamou. Está disposto a fazer o que esta menina está pedindo?
– Faço o que o senhor pedir, Lorde Faa. Diga-me para levar a garota e eu levo.
– Muito bem. Leve a garota aonde ela deseja ir e faça o que ela pedir. Lyra,
agora estou dando as suas ordens, está entendendo?
– Sim, Lorde Faa.
– Você vai procurar seja o que for, e quando tiver encontrado, volte
imediatamente. Iorek Byrnison, vamos estar viajando, de modo que vai ter que nos
alcançar.
O urso assentiu com a enorme cabeça.
– Algum soldado na aldeia? – ele perguntou. –Vou precisar da minha armadura?
Vamos mais depressa sem ela.
– Não, eu tenho certeza, Iorek. Obrigada, Lorde Faa, prometo fazer o que o
senhor mandou.
Tony Costa deu-lhe um pedaço de carne-seca para mascar, e com Pantalaimon
como ratinho dentro do seu capuz, Lyra subiu para as costas amplas do urso,
agarrando seus pêlos com suas luvas de lã e prendendo os joelhos na cintura fina e
musculosa dele. A pelagem dele era maravilhosamente espessa, e a sensação de
grande poder que ela experimentou era avassaladora. Como se ela nada pesasse, ele
virou-se e saiu a galope na direção da serra e das árvores baixas.
Levou algum tempo para que ela se acostumasse com o movimento, e então
sentiu-se invadida por um grande entusiasmo. Estava cavalgando um urso! A Aurora
Boreal estendia-se acima deles em arcos e arabescos dourados, e à volta dela, o
impiedoso frio do Pólo Ártico e o silêncio imenso do Norte.
As patas de Iorek Byrnison mal faziam ruído na neve. As árvores eram magras e
pouco crescidas, pois ficavam na borda da tundra, mas havia galhos secos e moitas
espinhentas no caminho.
O urso passava por elas como se fossem teias de aranha.
Subiram a serra baixa entre erupções de rocha negra, e logo estavam fora das
vistas dos viajantes. Lyra queria conversar com o urso, e se ele fosse humano ela já
estaria amiga dele; mas ele era tão estranho, selvagem e frio que ela sentia timidez,
talvez pela primeira vez na vida. Assim, enquanto ele seguia a galope, as pernas
poderosas movendo-se incansáveis, ela ficou em silêncio. Talvez ele preferisse assim,
ela pensou; ela devia parecer um filhote bagunceiro, mal saído do ninho, aos olhos do
urso de armadura.
Raras vezes ela pensara em si própria e achava a experiência interessante,
porém desconfortável; aliás, bem parecido com cavalgar o urso. Iorek Byrnison
galopava depressa, movendo ambas as pernas de um lado do corpo ao mesmo tempo
e balançando-se de um lado para outro num ritmo forte e regular.
Ela descobriu que não podia apenas ficar agarrada a ele; precisava seguir seus
movimentos.
Estavam com cerca de uma hora de viagem e Lyra sentiu-se dura e dolorida,
porém profundamente feliz, quando Iorek Byrnison diminuiu a velocidade e parou.
– Olhe para cima – ele disse.
Lyra ergueu os olhos e teve que enxugá-los com o pulso, pois sentia tanto frio que
tinha lágrimas nos olhos. Quando conseguiu enxergar, ficou boquiaberta com a visão do
céu. A Aurora Boreal desbotara para um brilho pálido e trêmulo, mas as estrelas
brilhavam como diamantes, e através do grande domo pontilhado de diamantes,
centenas e centenas de minúsculas figuras negras voavam do leste e do sul em direção
ao norte.
– São pássaros? – ela perguntou.
– São bruxas – disse o urso.
– Bruxas? Que é que estão fazendo?
– Reunindo-se para a guerra, talvez. Nunca vi tantas ao mesmo tempo.
– Conhece alguma bruxa, Iorek?
– Já servi a algumas delas. E lutei contra algumas, também. Isto vai deixar Lorde
Faa assustado. Se elas estão indo ajudar os seus inimigos, vocês todos deviam ficar
com medo.
– Lorde Faa não vai ficar com medo. Você não está com medo, está?
– Ainda não. Quando estiver, vou controlar meu medo. Mas é melhor contarmos a
Lorde Faa sobre as bruxas, porque os homens podem não ter visto.
Ele seguiu mais devagar, e ela ficou observando o céu até seus olhos encheremse
novamente de lágrimas de frio, mas não viu terminar o fluxo de bruxas que voavam
para o norte. Finalmente Iorek Byrnison estacou e disse:
– Esta é a aldeia.
A frente deles, havia uma ladeira íngreme e acidentada, e lá embaixo um punhado
de construções de madeira ao lado de uma vastidão de neve muito plana, que Lyra
imaginou ser o lago congelado. Um cais de madeira mostrou que ela estava certa. Os
dois estavam a menos de cinco minutos do lugar.
– Que é que você quer fazer? – o urso perguntou.
Lyra escorregou das costas dele e teve dificuldade em ficar de pé. Seu rosto
estava rígido de frio e as pernas tremiam, mas ela agarrou-se ao pêlo dele e bateu os
pés no chão até se sentir mais forte.
– Tem uma criança, ou um fantasma, ou uma coisa qualquer nesta aldeia, ou
talvez perto dela, não sei direito. Quero descobrir onde está e levar essa coisa para
Lorde Faa e para os outros, se eu conseguir. Pensei que era um fantasma, mas o leitor
de símbolos podia estar me dizendo alguma coisa que não consegui entender.
– Se ele está ao relento, vai ter que encontrar um abrigo qualquer- disse o urso.
– Acho que não está morto... – disse Lyra.
Mas não tinha a menor certeza. O aletômetro havia indicado alguma coisa
estranha e antinatural, o que era alarmante; mas quem era ela? A filha de Lorde Asriel.
E quem estava sob seu comando? Um urso poderoso. Como ela podia demonstrar
medo?
– Vamos procurar – ordenou.
Tornou a montar nas costas dele, e o urso desceu encosta abaixo, caminhando
sem pressa. Os cães da aldeia farejaram, ouviram ou sentiram a chegada deles e
puseram-se a uivar apavorantemente; e as renas em seus currais moviam-se
nervosamente, os chifres batendo uns nos outros como gravetos secos.
No ar imóvel, ouvia-se de longe cada movimento.
Quando chegaram à primeira casa, Lyra olhou para a direita e para a esquerda,
tentando enxergar na escuridão, pois a Aurora Boreal estava se dissipando, e a lua
ainda demoraria a nascer. Aqui e ali uma luz tremulava sob um telhado coberto de
neve; Lyra julgou ter visto rostos pálidos atrás da vidraça de algumas janelas, e ficou
imaginando a surpresa deles ao verem uma criança montada num grande urso branco.
No centro da pequena aldeia, havia um espaço aberto junto ao ancoradouro onde
os botes tinham sido deixados, parecendo protuberâncias na neve. O barulho dos
cachorros era ensurdecedor; no instante em que Lyra achou que aquilo ia acordar
alguém, uma porta se abriu, e um homem Saiu segurando uma espingarda. Seu
daemon-carcaju saltou para a pilha de lenha ao lado da porta, espalhando neve.
Lyra desceu imediatamente e ficou parada entre ele e Iorek Byrnison, lembrandose
de ter dito ao urso que não haveria necessidade da armadura.
O homem falou em palavras que ela não conseguiu entender. Iorek Byrnison
respondeu na mesma língua, e o homem, soltou um gemido de medo.
– Ele acha que somos demônios. Que é que eu digo? - quis saber o urso.
– Diga-lhe que não somos demônios, mas temos amigos que são. E estamos
procurando... só uma criança. Uma criança estranha. Diga isto a ele.
Assim que o urso disse isto, o homem apontou para a direita, indicando um lugar
distante, e falou rapidamente. Iorek Byrnison traduziu:
– Ele quer saber se viemos levar a criança embora. Estão com medo dela.
Tentaram fazer que ela fosse, mas ela sempre volta.
–Diga que vamos levar a criança com a gente, mas que eles foram muito maus
em tratá-la assim. Onde está ela, afinal? O homem explicou, gesticulando
animadamente. Lyra teve medo de que ele disparasse a arma por acidente, mas assim
que acabou de falar ele correu de volta para casa e fechou a porta. Lyra via rostos em
todas as janelas.
– Onde está a criança? – perguntou.
– Na peixaria – disse o urso, virando-se para seguir na direção do ancoradouro.
Lyra seguiu-o. Estava horrivelmente nervosa. O urso dirigia-se ao barracão
estreito de madeira, erguendo a cabeça para farejar, e quando chegou à porta, ele
estacou e disse:
– Aí dentro.
O coração de Lyra batia tão depressa que ela mal conseguia respirar. Levantou a
mão para bater na porta e então, achando ridículo esse gesto, respirou fundo para
chamar, mas percebeu que não sabia o que ia dizer. Ah, estava tão escuro! Devia ter
levado uma lamparina...
Não havia escolha, e de qualquer maneira ela não queria que o urso visse seu
medo. Ele falara em controlar o medo: era isso que ela teria que fazer. Ergueu a tira de
couro de rena que segurava a porta e empurrou-a com força. Ela abriu-se com ruído.
Lyra teve que afastar com os pés a neve empilhada na frente da porta antes
deconseguir abrir inteiramente a porta, e Pantalaimon em nada ajudava, correndo de
um lado para outro em sua forma de arminho, uma sombra branca sobre o solo branco,
fazendo ruídos de medo.
– Pan, pelo amor de Deus! Vire morcego e vá olhar para mim...
Mas ele não quis, e também não quis falar. Ela nunca o vira assim, a não ser na
ocasião em que ela e Roger tinham trocado de lugar as moedas dos daemons na cripta
da Jordan. Agora ele estava ainda mais amedrontado que ela. Quanto a Iorek Byrnison,
o urso estava deitado na neve ali perto, observando em silêncio.
– Saia daí! – Lyra ordenou, o mais alto que ousou. - Saia!
Não houve resposta. Ela abriu um pouco mais a porta, e Pantalaimon saltou para
os seus braços em forma de gato, cutucando-a e dizendo:
– Vá embora! Não fique aqui! Ah, Lyra, vá agora! Vire as costas!
Tentando segurá-lo, ela viu que Iorek Byrnison ficava de pé e virou-se para ver
uma figura correndo pelo caminho que vinha da aldeia, carregando uma lamparina.
Quando a figura se aproximou, ergueu a lamparina para mostrar o rosto: um ancião de
rosto largo e enrugado e os olhos perdidos no meio de mil rugas. Seu daemon era uma
raposa do Artico.
Ele falou, e Iorek Byrnison traduziu:
– Ele diz que não é a única criança desse tipo. Já viu outras na floresta. As vezes
elas morrem logo, às vezes não morrem. Essa aí é durona, ele acha. Mas seria melhor
para ela se morresse.
– Pergunte se ele pode me emprestar a lamparina –disse Lyra.
      O urso falou e o homem entregou a lamparina de imediato, assentindo
vigorosamente. Ela entendeu que ele tinha vindo trazer a lamparina para ela, e
agradeceu. Ele assentiu outra vez e recuou para longe dela, do barracão e do urso.
Lyra pensou de repente: e se for o Roger? E rezou com todas as forças para que
não fosse. Pantalaimon estava agarrado a ela, novamente um arminho, as pequenas
garras enfiadas no casaco dela.
      Lyra ergueu a lamparina e deu um passo para dentro do barracão, e então viu o
que era que o Conselho de Oblação estava fazendo e qual a natureza do sacrifício que
as crianças estavam tendo que fazer.
      O menininho estava encolhido de encontro à grade de secagem com suas filas e
filas de peixes pendurados, duros como tábuas. Ele apertava ao peito um pedaço de
peixe seco como Lyra apertava Pantalaimon: com ambas as mãos, contra o coração;
mas, era tudo que ele tinha: um pedaço de peixe seco; porque ele não tinha um
daemon. Os Papões tinham separado o daemon dele.
Isso era intercisão, e aquela era uma criança seccionada!

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