sábado, 18 de outubro de 2014

15- Os Daemons nas Caixas de Vidro

    Não era do temperamento de Lyra ficar parada remoendo os problemas; ela
era uma criança impulsiva e prática, e além disso não tinha muita imaginação.
     Ninguém que tivesse imaginação pensaria seriamente que era possível percorrer
toda aquela distância e salvar seu amigo Roger; ou, se pensasse, uma criança
com imaginação pensaria logo em várias razões por que aquilo seria impossível.
     Para ser uma mentirosa experiente não é preciso ter grande imaginação. Muitos
mentirosos não têm imaginação; é isso que dá convicção ás suas mentiras.
    De modo que, agora que estava nas mãos do Conselho de Oblação, Lyra
não se permitiu ficar doente de preocupação pelo que teria acontecido aos
gípcios. Eram todos bons lutadores, e mesmo Pantalaimon tendo dito que viu John
Faa ser atingido, ele podia ter se enganado; se não estivesse enganado, John Faa
podia não estar seriamente ferido. Ela ter caído nas mãos dos samoiedes tinha sido
uma falta de sorte, mas os gípcios logo viriam libertá-la; se eles não conseguissem,
nada impediria Iorek Byrnison de tirá-la de lá; e então eles voariam para Svalbard no
balão de Lee Scoresby e libertariam Lorde Asriel.
Para ela era tudo simples.
Assim, na manhã seguinte, quando acordou no dormitório, ela estava curiosa e
pronta para enfrentar o que o dia lhe trouxesse.
E ansiosa para ver Roger - principalmente ansiosa para vê-lo antes que ele a
visse.
Não precisou esperar muito. As crianças de todos os dormitórios eram acordadas
ás 7:30 pelas enfermeiras que tomavam conta delas; vestiam-se e iam juntar-se ás
outras na cantina, para o café da manhã. E lá estava Roger.
Ele estava sentado com outros cinco garotos numa mesa logo junto á porta. A fila
para pegar a comida passava bem perto dele, de modo que ela deu um jeito de deixar
cair um lenço e abaixou-se para apanhá-lo, de modo que Pantalaimon pudesse falar
com Salcília, o daemon de Roger.
Ela estava na fórma de um tentilhão e bateu as asas com tanta agitação que
Pantalaimon teve que virar um gato e saltar sobre ela, prendendo-a no chão para poder
cochichar no ouvido dela. Por sorte estas escaramuças rápidas entre os daemons das
crianças eram comuns, e ninguém prestou atenção, mas Roger empalideceu; Lyra
nunca tinha visto uma pessoa ficar tão branca.
Ele ergueu os olhos para ela, que lhe deu um olhar neutro e distante; a cor voltou
ao rosto dele, e ele encheu-se de esperança, excitação e alegria; foi Pantalaimon
quem, sacudindo Salcília com firmeza, conseguiu impedir que Roger desse um grito e
um pulo para abraçar sua amiguinha da Jordan.
Lyra desviou os olhos, agindo com o maior desprezo que pôde fingir, fazendo cara
de impaciência para as suas novas amigas verem. As quatro garotas pegaram suas
bandejas com flocos de milho e torradas e sentaram-se juntas, numa confraria
instantânea, excluindo todas as outras pessoas para poderem mexericar sobre elas.
Não se consegue manter num só lugar um grupo grande de crianças sem lhes dar
muitas coisas para fazer, e de certo modo Bolvangar era como uma escola, com
atividades programadas, tais como ginástica e "arte". Meninos e meninas eram
mantidos separados, a não ser no recreio e na hora das refeições, de modo que foi só
no meio da manhã, depois de uma hora e meia de costura sob a supervisão de uma
das enfermeiras, que Lyra teve chance de conversar com Roger. Mas tinha que
parecer natural, esta era a dificuldade. Todas as crianças tinham mais ou menos a
mesma idade, e era a idade em que meninos conversam com meninos e meninas com
meninas, todos eles fazendo a maior questão de ignorar o sexo oposto.
Ela tornou a encontrar sua oportunidade na cantina, quando as crianças foram
merendar. Lyra enviou Pantalaimon como mosca para conversar com Salcília na parede
ao lado da sua mesa enquanto ela e Roger ficavam em grupos separados. Era difícil
conversar enquanto a atenção do seu daemon está em outro lugar, de modo que Lyra
fingia estar revoltada e melancólica enquanto bebericava o leite com as outras meninas.
Metade da sua atenção estava na conversa de zumbidos entre os dois daemons, e ela
não prestava muita atenção às companheiras de mesa, mas, em dado momento, ouviu
uma menina de cabelos louros e brilhantes dizer um nome que lhe deu um sobressalto.
Era o nome de Tony Makarios. Quando sua atenção se voltou para isso,
Pantalaimon teve que diminuir a conversa com o daemon de Roger, e ambas as
crianças ficaram escutando o que a menina estava dizendo.
– Não, eu sei por que levaram ele - dizia a garota, enquanto as outras chegavam
mais perto para ouvir. – Foi porque o daemon dele não mudava. Eles achavam que ele
era mais velho do que parecia, ou coisa assim, e ele não era mesmo um garoto novo.
Mas, na verdade, o daemon quase nunca mudava porque o Tony quase nunca pensava.
Eu o vi mudar. O nome dele era Rateira...
– Por que eles estão tão interessados em daemons? – Lyra perguntou.
– Ninguém sabe - disse a loura.
– Eu sei - disse um rapaz que estava escutando. – O que eles fazem é matar o
seu daemon para ver se você morre.
– Bom, então por que é que eles fazem isso com várias crianças? - alguém
contestou.
– Só precisavam fazer uma vez, não é?
–Eu sei o que eles fazem - disse a primeira menina. Ela agora era o centro das
atenções de todos. Porém, como as crianças não queriam que algum adulto soubesse
do que estavam falando, elas tinham que adotar modos de indiferença e distração
enquanto ouviam com curiosidade apaixonada.
– Como é que sabe? - alguém perguntou.
–Porque eu estava com ele quando vieram para buscá-lo. A gente estava na
rouparia - ela explicou. Estava vermelha como um pimentão. Se estava esperando
graçolas e implicâncias, ficou aliviada, pois todas as crianças estavam preocupadas e
nenhuma sequer sorriu. Ela continuou:
–A gente estava bem quieto, e então a enfermeira entrou, aquela da voz
açucarada. E ela disse: "Vem, Tony, sei que você está aí, não vamos machucar
você..." E então ele perguntou: "Que é que vai acontecer?" E ela disse: "A gente vai
botar você para dormir e fazer uma pequena operação, e então você vai acordar muito
bem." Mas Tony não acreditou. Ele falou...
– Os buracos! - alguém exclamou, interrompendo. - Fazem um buraco na cabeça
da gente, como os tártaros! Aposto!
– Cala a boca! Que mais que a enfermeira disse? – outra criança perguntou. A
essa altura, havia mais de uma dúzia de crianças em volta da mesa de Lyra, seus
daemons igualmente curiosos, todos tensos, de olhos arregalados. A loura continuou:
– Tony queria saber o que iam fazer com a Rateira, entendem? E a enfermeira
disse: "Bom, ela vai dormir também, na hora em que você dormir." E Tony disse:
"Vocês vão matar ela, não vão? Sei que vão. Todos nós sabemos que é isso que
acontece." E a enfermeira disse: "Claro que não. É só uma pequena operação. Um
cortezinho. Não vai nem doer, mas a gente vai fazer você dormir só por segurança." A
cantina inteira estava em silêncio. A enfermeira de plantão tinha saído por um instante,
e a portinhola para a cozinha estava fechada, de modo que ninguém podia ouvir de lá.
– Que tipo de corte? - perguntou um menino com a voz assustada. - Ela disse
que tipo de corte era?
–Ela disse que era uma coisa para fazer ele ficar mais adulto. Disse que todo
mundo tinha que passar por aquilo, e que esse era o motivo dos daemons dos adultos
não mudarem como os nossos fazem. Então eles levam um corte que faz eles terem a
mesma forma para sempre, e é assim que as pessoas ficam adultas.
– Mas...
– Quer dizer...
– Então todos os adultos levam esse corte?
– E os...
De repente, todas as vozes silenciaram como se elas próprias tivessem sido
cortadas, e todos os olhos viraram-se para a porta.
A Enfermeira Clara estava ali, com ar tranqüilo e normal, e ao lado dela estava
um homem de jaleco branco que Lyra ainda não tinha visto.
– Bridget McGinn - ele chamou.
A lourinha levantou-se, estremecendo. Seu daemon-esquilo agarrava-se ao seu
peito.
– Sim? - ela falou, com uma voz que mal se ouvia.
– Termine o seu leite e venha com a Enfermeira Clara - ele instruiu. - O resto de
vocês vai para as suas aulas. Obedientemente as crianças colocavam sua louça no
carrinho de aço inoxidável e saíam em silêncio. Ninguém olhou para Bridget McGinn a
não ser Lyra, que viu o rosto da outra lívido de medo.
O resto da manhã foi ocupado com exercícios de ginástica.
Na Estação, havia um pequeno pavilhão de ginástica, pois era impossível
exercitar- se ao ar livre durante a longa noite polar, e os grupos de crianças se
revezavam sob a supervisão de uma enfermeira. As crianças tinham que formar times e
jogar bola; Lyra, que nunca em sua vida havia brincado assim, no princípio não sabia o
que fazer. Mas era rápida e atlética, e uma líder natural, e logo estava se divertindo.
Os gritos das crianças, a torcida dos daemons, tudo isto enchia o pequeno pavilhão e
logo afastava os pensamentos de temor - o que, naturalmente, era exatamente o
propósito dos exercícios.
Na hora do almoço, quando as crianças estavam novamente na cantina, Lyra
sentiu Pantalaimon dar um pio de reconhecimento e virou-se para encontrar Billy Costa
parado bem atrás dela.
– O Roger me disse que você estava aqui - ele cochichou.
–Seu irmão está vindo aí, mais John Faa e um bando de gípcios - ela disse. -
Vieram buscar você.
Ele quase soltou uma exclamação de alegria, mas disfarçou-a com um acesso de
tosse.
– E você tem que me chamar de Lizzie, nunca de Lyra - ela continuou. - E tem
que me contar tudo que sabe, certo?
Os dois se sentaram juntos, com Roger por perto. Era mais fácil fazer isto na
hora do almoço, com a cantina cheia; as crianças passavam mais tempo indo e vindo
por entre as mesas e havia sempre um grupo junto á portinhola. Sob o barulho de
talheres, Billy e Roger contaram a ela tudo que sabiam. Billy tinha ouvido uma
enfermeira dizer que as crianças que faziam a operação costumavam ser levadas para
locais mais ao sul, o que podia explicar como Tony Makarios acabou perdido. Mas
Roger tinha uma coisa ainda mais interessante para contar.
– Achei um esconderijo - disse.
–Onde?
– Está vendo aquele retrato? - Ele mostrou o grande painel da praia tropical. -
Olhe para o canto de cima á direita, está vendo aquela placa no teto?
O teto era feito de grandes placas retangulares presas numa armação de tiras de
metal, e o canto da placa acima do painel fotográfico estava levemente erguido.
–Eu vi aquilo e achei que as outras placas podiam ser soltas também;
experimentei, e são mesmo. É só levantar. Eu e um garoto experimentamos uma noite
no dormitório, antes de levarem ele. Tem um espaço lá em cima, e a gente pode
rastejar lá dentro...
– Até onde dá para rastejar?
– Sei lá. Só avançamos um pouco. Imaginamos que quando chegasse a hora
poderíamos nos esconder lá em cima, mas com certeza iriam nos encontrar. Lyra não
encarava aquilo como um esconderijo, mas como uma passagem. Era a melhor coisa
que ela havia ouvido desde que chegara! Mas antes que pudessem conversar mais, um
médico bateu com uma colher na mesa para pedir silêncio, depois começou a falar:
– Escutem, crianças! Prestem bastante atenção. De vez em quando, nós fazemos
um treinamento contra incêndio. É muito importante que todos consigam se vestir e sair
do prédio sem pânico. De modo que esta tarde vamos fazer um treinamento. Quando o
sino tocar, vocês têm que parar o que estiverem fazendo e obedecer ao que o adulto
mais próximo mandar. Guardem na memória o local para onde serão levados. É o lugar
aonde deverão ir se houver um incêndio de verdade.
Bem, é uma idéia, pensou Lyra.
Durante o início da tarde, Lyra e outras quatro garotas foram testadas em busca
de Pó. Os médicos não disseram que era isto que estavam fazendo, mas era fácil
adivinhar. Elas foram levadas uma a uma para um laboratório, e naturalmente isto as
deixou com muito medo. Lyra pensou: que crueldade morrer sem poder atacá-los! Mas
ao que parecia eles não iam fazer a tal operação por enquanto.
– Queremos fazer umas medições - o médico explicou. Era difícil distinguir entre
aquela gente: todos os homens se pareciam, com seus jalecos brancos, suas
pranchetas e seus lápis, e as mulheres também se pareciam, pois os uniformes e
aquele estranho ar de neutralidade e apatia faziam com que todas parecessem irmãs.
– Já fui medida ontem - Lyra disse.
– Ah, mas hoje são outras medidas. Fique sobre aquela placa de metal. Ah,
primeiro tire os sapatos. Segure o seu daemon, se quiser. Olhe para a frente, ísso
mesmo, para aquela luzinha verde. Boa menina...
Uma luz piscou. O médico virou o rosto dela para um lado e para outro, e a cada
vez alguma coisa estalava e uma luz piscava.
– Ótimo. Agora venha até esta máquina e coloque a mão dentro do tubo. Prometo
que não vai doer. Estique os dedos. Assim.
– Que é que o senhor está medindo? - ela perguntou. - Pó?
– Quem foi que lhe falou de Pó?
– Uma das meninas, não sei o nome dela. Ela disse que a gente estava cheia de
Pó. Eu não estou, pelo menos eu acho que não. Tomei banho ontem.
– Ah, é outro tipo de pó. Não dá para ver a olho nu. É uma poeira especial. Agora
feche a mão. Isso mesmo. Ótimo. Agora tateie dentro do tubo até encontrar uma
espécie de argola. Achou? Segure a argola. Agora pode botar sua outra mão aqui, em
cima deste globo de cobre. Ótimo. Vai sentir uma cosquinha leve, nada para se
preocupar, é só uma leve corrente anbárica... Pantalaimon, na forma de um gato-domato,
muito tenso e cauteloso, movia-se em volta da aparelhagem com olhares cheios
de suspeita, voltando sempre para esfregar-se em Lyra.
A essa altura, ela estava segura de que não iriam fazer a operação nela
imediatamente, e também de que seu disfarce como Lizzie Brooks estava a salvo, de
modo que arriscou uma pergunta.
– Por que vocês tiram os daemons das pessoas?
– Como assim? Quem lhe falou sobre isso?
– Uma garota, não sei o nome dela. Ela disse que vocês tiram os daemons das
pessoas.
– Bobagem...
Mas ele estava nervoso. Ela continuou:
– Porque vocês levam as crianças uma por uma, e elas nunca voltam. E algumas
acham que vocês simplesmente matam elas, e outras pessoas acham outras coisas, e
essa garota me disse que vocês tiram os...
– Não é verdade. Quando levamos as crianças, é porque chegou a hora de irem
para outro lugar. Elas estão crescendo. Acho que sua amiga está com medo sem
necessidade. Nada disso! Nem pense nisso. Quem é a sua amiga?
– Eu só cheguei ontem, não sei o nome de ninguém.
– Como é que ela é?
– Esqueci. Acho que tinha cabelos castanhos... bem claros, eu acho... Não sei.
O médico foi falar em voz baixa com a enfermeira. Enquanto os dois
conferenciavam, Lyra observava os daemons deles. O da enfermeira era um lindo
pássaro, calmo e desinteressado como o cão da Enfermeira Clara, e o do médico era
uma mariposa grande e pesada. Nenhum dos dois se movia. Estavam acordados, pois
os olhos do pássaro estavam abertos, e as antenas da mariposa moviam-se
languidamente, mas não estavam vivazes como seria de se esperar. Talvez não
estivessem mesmo ansiosos ou curiosos.
Finalmente o médico voltou e prosseguiu com o exame, pesando Lyra e
Pantalaimon separadamente, examinando-a atrás de uma tela especial, contando o seu
pulso, colocando-a sob um pequeno bocal que sibilava e soltava um cheiro de ar fresco.
No meio de um dos testes, um sino começou a tocar sem cessar.
– O alarme de incêndio - disse o médico, suspirando. - Muito bem, Lizzie,
acompanhe a Enfermeira Betty.
– Mas os agasalhos dela estão no prédio do dormitório, doutor. Ela não pode sair
assim. Acha que devamos ir lá primeiro?
Contrariado pela interrupção do exame, ele respondeu com irritação:
– Acho que o treinamento é para que surja exatamente esse tipo de detalhe. Que
atrapalhação!
Lyra mais que depressa interveio:
– Ontem quando eu cheguei a Enfermeira Clara botou as minhas roupas num
armário naquele primeiro quarto onde ela me examinou. O do lado. Eu podia usar as
minhas roupas.
– Boa idéia! Vamos, então - aprovou a enfermeira. Com secreta excitação, Lyra
apressou-se a seguir a enfermeira e recuperou seus agasalhos de pele, as perneiras e
as botas, e vestiu-se depressa, enquanto a enfermeira vestia-se de seda carbonífera.
Então saíram apressadas. Na grande praça em frente ao principal grupo de
construções, havia umas 100 pessoas, entre adultos e crianças: algumas excitadas,
outras irritadas, muitas apenas confusas.
– Está vendo? Vale a pena fazer isso para ver o caos que seria se o incêndio
fosse de verdade - dizia um adulto. Alguém estava soprando um apito e balançando os
braços, mas ninguém prestava atenção. Lyra avistou Roger e chamou-o com um gesto;
Roger puxou Billy Costa pelo braço e logo os três estavam juntos naquela confusão de
crianças correndo.
– Ninguém vai notar se a gente der uma olhada por aí – Lyra sugeriu. – Vão levar
anos para contar todo mundo, e podemos dizer que seguimos alguém e nos perdemos.
Esperaram até que a maioria dos adultos estivesse olhando para outro lado, e então
Lyra pegou um pouco de neve, fez uma bola e jogou-a no meio da multidão; num
instante todas as crianças estavam fazendo isto, e o ar estava cheio de bolas de neve
voando. Gritos e risadas encobriam completamente os gritos dos adultos que tentavam
restabelecer a ordem, e num instante as três crianças dobraram a esquina de uma das
construções, ficando fora da vista dos outros.
A neve era tão espessa que eles não conseguiam mover-se depressa, mas isto
parecia não ter importância, pois ninguém os seguiu. Lyra e os outros escalaram o
telhado curvo de um dos túneis e encontraram-se numa estranha paisagem lunar de
protuberâncias e reentrâncias, tudo coberto de branco sob o céu negro e iluminado
pelos reflexos das luzes em volta da praça.
– Que é que estamos procurando? - Billy quis saber.
– Sei lá. Estamos só olhando - Lyra respondeu, guiando-os até um prédio baixo e
quadrado, um pouco separado dos outros, com uma fraca luz anbárica no canto. O
ruído da multidão continuava forte, porém mais distante. Era evidente que as crianças
estavam aproveitando ao máximo sua liberdade, e Lyra esperava que elas
continuassem assim por algum tempo. Ela rodeou a construção quadrada, procurando
uma janela. O teto estava apenas a pouco mais de dois metros do chão e, ao contrário
dos outros, não era ligado ao resto da Estação por um túnel.
Não havia janela, mas uma porta. Um cartaz acima dela dizia, em letras
vermelhas: EXPRESSAMENTE PROIBIDA A ENTRADA.
Lyra estendeu a mão para tentar abrir a porta, mas antes que pudesse girar a
maçaneta Roger exclamou:
– Veja! Um pássaro! Ou... A exclamação terminou em tom de dúvida, porque a
criatura que descia do céu negro não era um pássaro; era alguém que Lyra já
conhecia.
– O daemon da bruxa! O ganso bateu as enormes asas, erguendo uma chuva de
neve quando pousou.
– Saudações, Lyra-disse. – Segui você até aqui, embora você não tenha me visto.
Fiquei esperando que você aparecesse aqui fora. Que é que está acontecendo? Ela lhe
contou e perguntou:
– Onde estão os gípcios? John Faa está bem? Eles conseguiram afastar os
samoiedes?
– A maioria deles está a salvo. John Faa está ferido, mas não gravemente. Os
homens que a levaram eram caçadores que costumam atacar caravanas, e aos pares
eles conseguem viajar mais depressa do que com um grupo grande. Os gípcios ainda
estão a um dia de viagem daqui.
Os dois meninos observavam temerosos o daemon-ganso e os modos familiares
de Lyra com ele, pois naturalmente nunca tinham visto um daemon sem seu humano, e
pouco sabiam sobre bruxas. Lyra lhes disse:
– Escutem, é melhor vocês irem vigiar, certo? Billy, você vai por aquele lado, e
Roger, vigie por onde viemos. Não temos muito tempo. Eles correram para fazer o que
ela pediu, e então Lyra virou-se outra vez para a porta.
– Por que está tentando entrar aí? - perguntou o daemon-ganso.
– Por causa do que eles fazem aí dentro. Eles cortam... – ela baixou a voz – ...
cortam fora os daemons das pessoas. Das crianças. E acho que talvez isto seja feito aí
dentro. Pelo menos tem alguma coisa aí dentro, e eu ia olhar. Mas está trancado...
– Eu consigo abrir - disse o ganso. Ele bateu as asas uma ou duas vezes,
jogando neve na porta, e Lyra escutou alguma coisa girar na fechadura.
– Entre com cuidado - disse o daemon. Lyra abriu a porta com esforço por causa
da neve, e esgueirou-se para dentro. O daemon-ganso entrou com ela. Pantalaimon
estava agitado e temeroso, mas não queria que o daemon da bruxa visse seu medo, de
modo que voou para o peito de Lyra e abrigou-se dentro do casaco dela.
Assim que os olhos de Lyra se acostumaram á penumbra ela viu o motivo dessa
agitação.
Numa série de caixas de vidro em prateleiras nas paredes, estavam todos os
daemons das crianças seccionadas: formas fantasmagóricas de gatos, pássaros, ratos
e outras criaturas, todos perplexos, assustados e pálidos como fumaça.
O daemon da bruxa soltou uma exclamação de raiva, e Lyra apertou Pantalaimon
contra si, dizendo:
– Não olhe! Não olhe!
– Onde estão as crianças desses daemons? - o ganso perguntou, tremendo de
raiva. Lyra contou seu encontro com o pequeno Tony Makarios e olhou por cima do
ombro para os pobres daemons encarcerados, que apertavam os focinhos pálidos
contra o vidro. Lyra escutava gritos abafados de dor e sofrimento. Na luz fraca de uma
lâmpada anbárica de baixo poder, ela viu em frente a cada caixa um nome num cartão,
e havia uma caixa vazia com o nome de Tony Makarios. Havia outras quatro ou cinco
caixas vazias com nomes.
– Quero soltar esses pobrezinhos! - disse com fúria. - Vou quebrar o vidro e
soltar todos eles...
E olhou em volta procurando alguma coisa para quebrar o vidro, mas não
encontrou.
– Espere - disse o daemon-ganso. Ele era o daemon de uma bruxa e muito mais
velho que ela, e mais forte. Ela foi obrigada a obedecer.
– Temos que fazer essas pessoas acreditarem que alguém se esqueceu de
trancar o lugar e fechar as caixas - ele explicou. - Acha que seu disfarce vai durar
muito tempo se encontrarem vidro quebrado e pegadas na neve? Ele tem que durar até
a chegada dos gípcios. Agora faça exatamente o que eu digo: pegue um punhado de
neve e quando eu mandar, sopre um pouquinho em cima de cada caixa. Ela correu para
fora. Roger e Billy ainda estávam montando guarda, e o barulho de gritos e risadas na
arena ainda era forte, pois tinha se passado pouco mais de um minuto. Ela encheu as
duas mãos de neve solta e voltou para dentro para fazer o que o daemon-ganso havia
mandado. Enquanto ela soprava um pouco de neve sobre cada caixa, o ganso dava um
estalinho com a garganta e a tranca de cada caixa se abria.
Depois de destrancar todas, ela abriu a frente da primeira, e a figura pálida de
uma andorinha lançou-se para fora, mas caiu no chão, sem conseguir voar. O ganso
inclinou-se e colocou-a de pé carinhosamente, com o bico, e a andorinha virou uma
ratazana cambaleante e confusa. Pantalaimon saltou para o chão para consolá-la.
Lyra trabalhou depressa, e em poucos minutos todos os daemons estavam livres.
Alguns tentavam falar, e rodeavam os pés dela e até tentavam bicar suas perneiras,
embora o tabu os impedisse. Ela sabia a razão: os pobrezinhos sentiam falta do calor
sólido e pesado do corpo dos seus humanos; como Pantalaimon teria feito, eles
ansiavam por se achegarem a um coração pulsando.
– Agora depressa, Lyra, você tem que voltar correndo e se misturar as outras
crianças – disse o ganso. – Seja corajosa, filha. Os gípcios estão vindo o mais
depressa possível. Tenho que ajudar esses coitados a encontrarem seus humanos...
Ele se aproximou dela e disse baixinho: - Mas nunca tornarão a ser unos. Estão
separados para sempre. É a coisa mais cruel que já vi... Pode deixar suas pegadas, eu
vou cobri-las. Agora corra... - Ah, por favor, antes de ir... As bruxas... Elas voam
mesmo, não é? Eu não estava sonhando quando vi bruxas voando?
– Sim, minha filha. Por quê?
– Elas poderiam puxar um balão?
– Claro que sim, por quê?
– Serafina Pekkala vem também?
– Não tenho tempo para explicar a política das nações das bruxas. Existem
grandes poderes envolvidos, e Serafina Pekkala deve cuidar dos interesses do seu clã.
Mas pode ser que isso que está acontecendo aqui seja parte de tudo que está
acontecendo em toda parte. Lyra, precisa voltar para lá. Corra, corra! Ela correu, e
Roger, que observava de olhos arregalados os daemons pálidos que saíam da
construção, foi até ela através da neve.
– Eles são... É como a cripta da Jordan... São daemons!
– Sim, fale baixo. Não conte a Billy. Não conte a ninguém. Vamos voltar. Atrás
deles, o ganso batia as asas com força, jogando neve sobre as pegadas das crianças;
os daemons perto dele se amontoavam com gemidos de sofrimento e saudade. Depois
de cobrir as pegadas, o ganso virou-se para reunir o grupo de daemons pálidos.
Ele falou alguma coisa, e um por um eles mudaram de forma embora isso lhes
custasse um grande esforço, até serem todos pássaros; e como filhotinhos eles
seguiram o daemon da bruxa, voejando, caindo e correndo pela neve atrás dele, e
finalmente, com grande dificuldade, levantando vôo. Subiram numa fila irregular, pálida
e fantasmagórica contra o céu escuro, aos poucos ganhando altura, embora alguns
voassem erraticamente, enquanto outras perdiam altura; mas o grande ganso cinzento
voltou-se e os colocou no rumo certo, e finalmente sumiram todos na escuridão.
Roger puxava o braço de Lyra.
– Depressa, eles estão quase prontos - ele disse.
Saíram correndo aos tropeços pela neve ao encontro de Billy, que acenava da
esquina do prédio principal. As crianças tinham se cansado, ou então os adultos haviam
feito valer sua autoridade, porque havia uma fila começando na porta principal, com
muitos empurrões e discussões. Lyra e os outros dois misturaram-se às outras
crianças, mas não antes de Lyra dizer:
– Espalhem entre as crianças que é para elas se prepararem para fugir. Precisam
saber onde estão as roupas de frio, ficar prontas para pegar as roupas e correr assim
que dermos o sinal.
E isso tem que ser um segredo mortal, entenderam? Billy assentiu, e Roger
perguntou:
– Qual será o sinal?
– O alarme de incêndio – disse Lyra. - Quando chegar a hora, eu vou fazer ele
disparar.
Esperaram a contagem. Se alguém do Conselho de Oblação tivesse alguma coisa
a ver com uma escola, teria preparado melhor o treinamento: como não estavam
divididas em grupos, eles tinham que procurar o nome de cada criança na lista
completa, que evidentemente não estava em ordem alfabética; e nenhum dos adultos
estava acostumado a controlar crianças. De modo que houve muita confusão, embora
todas permanecessem em fila.
Lyra observava tudo. Aquelas pessoas não sabiam trabalhar; eram negligentes
em certas coisas; reclamavam daquele treinamento, não sabiam onde deviam ficar as
roupas de frio, não conseguiam fazer as crianças formarem uma fila decente; e essa
negligência poderia ser vantajosa para ela.
Estava tudo quase terminado quando houve outra interrupção, que do ponto de
vista de Lyra foi a pior possível.
Ela ouviu o som ao mesmo tempo que os outros. Todos começaram a olhar para
o céu escuro em busca do zepelim, cujo motor a gás pulsava no ar imóvel.
A única sorte foi que ele vinha da direção oposta ao caminho do ganso. Mas era o
único consolo; logo a nave estava visível, e um murmúrio de excitação percorreu a
multidão. O corpo roliço, leve e prateado deslizou acima da avenida de luzes, e suas
próprias luzes clareavam o solo.
O piloto diminuiu a velocidade e iniciou o complicado processo de ajustar a altura.
Lyra percebeu a função do mastro: amarrar a aeronave. Enquanto os adultos levavam
as crianças para dentro, com todas olhando para cima e apontando, a equipe de terra
subia a escada do mastro, preparando-se para receber os cabos de atracação. Os
motores roncavam, e a neve subia do solo, e os rostos dos passageiros apareciam nas
janelas da cabine.
Lyra olhou e o que viu não lhe deixou dúvidas. Pantalaimon agarrou-se a ela,
tornou-se um gato-do-mato e sibilou de ódio, porque, olhando pela janela com
curiosidade, estava o lindo rosto da Sra. Coulter, tendo no colo o seu daemon dourado.

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