sábado, 18 de outubro de 2014

16- A Guilhotina Prateada

Lyra imediatamente enfiou a cabeça dentro do abrigo de seu capuz de pele
de carcaju e entrou pelas portas duplas com as outras crianças. Teria tempo
suficiente para se preocupar com o que ia dizer quando as duas se encontrassem
cara a cara; tinha outro problema a resolver primeiro, qual seja: onde esconder as
roupas de modo que pudesse pegá-las sem precisar pedir permissão.
Mas por sorte havia tal desordem no prédio, com os adultos tentando
apressar a entrada das crianças para darem lugar aos passageiros do zepelim,
que ninguém estava vigiando muito bem.
Lyra tirou o casaco, as perneiras e as botas e fez deles a menor trouxa que
conseguiu, antes de atravessar os corredores cheios de gente e ir para o seu
dormitório.
Rapidamente puxou a mesa-de-cabeceira para o canto, subiu em cima dela e
empurrou uma placa do teto. A placa ergueu-se, como Roger tinha dito, e lá em cima
ela enfiou as botas e as perneiras. Em seguida tirou o aletômetro da sacola e enfiou-o
no bolso mais escondido do casaco, antes de guardar também o casaco no esconderijo
do teto.
Depois saltou para o chão, empurrou a mesinha para o lugar e cochichou com
Pantalaimon:
– Temos que fingir que somos idiotas até ela nos ver, e então dizemos que fomos
raptados. E nada sobre os gípcios, e especialmente sobre Iorek Byrnison.
Pois Lyra agora percebia algo que não tinha percebido antes: que todo o medo
em sua natureza era atraído para a Sra. Coulter como o ponteiro de uma bússola é
atraído pelo Pólo. Podia suportar todas as outras coisas que tinha visto, até mesmo a
terrível crueldade da intercisão; era suficientemente forte para isto. Mas a idéia
daquele rosto delicado e da voz gentil, a imagem do macaco dourado e brincalhão
eram suficientes para fazer seu estômago congelar e deixá-la pálida e nauseada.
Mas os gípcios estavam chegando – precisava pensar nisso, pensar em Iorek
Byrnison; e não se denunciar.
Voltou para a cantina, de onde vinha muito barulho.
As crianças faziam fila para ganhar leite quente, algumas ainda usando os
casacos de seda carbonífera. As conversas eram sobre o zepelim e sua passageira.
– Era ela. Com o daemon-macaco.
– Foi ela quem pegou você também?
– Ela disse que ia escrever para mamãe e papai e aposto que não escreveu...
– Ela nunca nos contou que as crianças morriam. Nunca falou sobre isso.
– Aquele macaco, ele é o pior. Pegou a minha Karossa e quase matou. Eu fiquei
fraco...
Todos tinham tanto medo quanto Lyra. Ela encontrou Annie e as outras e sentouse
com elas.
–Escutem, vocês conseguem guardar um segredo?
–Sim!
As três olharam para ela com grande expectativa.
–Existe um plano de fuga. Certas pessoas vêm nos libertar, vão chegar amanhã à
noite. Talvez antes. O que temos que fazer é estarmos prontos e assim que ouvirmos o
sinal, pegarmos nossas roupas de frio e corrermos para fora. Nada de esperar. Vai ser
preciso correr. Mas se não pegarem os agasalhos e as botas, vocês vão morrer de
frio.
– Qual vai ser o sinal? – Annie quis saber.
– O alarme de incêndio vai tocar, como tocou hoje. Está tudo planejado. Todas as
crianças vão ficar sabendo, e nenhum dos adultos. Especialmente ela.
Todos tinham os olhos brilhantes de esperança e entusiasmo. E a mensagem
estava se espalhando por toda a cantina: Lyra sentia que a atmosfera havia mudado.
Ao ar livre, as crianças estavam alegres, cheias de energia e ansiosas para brincar;
então, depois que viram a Sra. Coulter, elas se encheram de medo e histeria reprimida;
mas agora havia em sua tagarelice um controle e um propósito. Lyra maravilhou-se
com o poder da esperança.
Ficou vigiando a porta aberta, mas com cautela, pronta para baixar a cabeça;
ouviram-se vozes de adultos que se aproximavam, e então a Sra. Coulter em pessoa
apareceu por um instante, olhou para dentro da cantina e sorriu para as crianças
felizes, com seus copos de leite quente e seus biscoitos, tão quentinhas e bem
nutridas.
Quase instantaneamente um arrepio percorreu a cantina, e todas as crianças
silenciaram e ficaram imóveis, olhando para ela.
A Sra. Coulter sorriu e seguiu em frente sem uma palavra.
Aos poucos, a conversa recomeçou na cantina. Lyra perguntou:
–Onde é que eles conversam?
–Provavelmente na sala de reuniões – disse Annie. - Uma vez nos levaram lá
acrescentou, referindo-se a ela e seu daemon. – Eram uns 20 adultos e um deles
estava fazendo uma palestra. Eu tive que ficar parada lá e fazer o que ele mandava,
como ver a distância que o Kyrillion podia ficar de mim, e então ele me hipnotizou e fez
outras coisas... É uma sala enorme com muitas cadeiras e mesas e uma pequena
plataforma. Fica atrás da recepção. Ei, aposto que eles vão fingir que o treinamento de
incêndio deu certo. Aposto que eles têm medo dela, igual a nós...
Pelo resto do dia Lyra ficou perto das outras meninas, observando, Falando
pouco, agindo discretamente. Houve ginástica, depois costura, depois o jantar, o
recreio no salão – um aposento grande e tristonho, com tabuleiros de jogos, alguns
livros velhos e uma mesa de pingue-pongue. Em certo momento, Lyra e os outros
tomaram consciência de que estava acontecendo alguma emergência, porque os
adultos andavam apressados de um lugar para outro ou ficavam parados em grupinhos,
conversando com ansiedade.
Lyra adivinhou que eles tinham descoberto a fuga dos daemons e tentavam
entender como aquilo havia acontecido.
Mas não viu a Sra. Coulter, o que foi um alivio. Quando chegou a hora de dormir,
ela já sabia que teria que contar tudo às outras.
– Escute, eles costumam vir ver se estamos mesmo dormindo?
– Uma vez só – disse Bella. – Mas só passam o facho da lanterna, não olham de
verdade.
– Ótimo, porque vou dar uma olhada por aí. Há um caminho pelo teto que um
garoto me ensinou...
Ela explicou e antes mesmo de terminar foi interrompida por Annie:
– Vou com você!
– É bom não ir, porque é melhor que só uma menina fique sumida. Todas podem
dizer que estavam dormindo e não me viram sair.
– Mas se eu fosse com você...
– Seria mais fácil sermos apanhadas – Lyra completou. Os daemons das duas se
entreolhavam: Pantalaimon como gato-do-mato e Kyrillion como raposa. Ambos
tremiam de leve. Pantalaimon sibilou quase inaudivelmente e mostrou os dentes, e
Kyrillion virou-se para o outro lado e pôs-se a lamber os próprios pêlos
despreocupadamente.
– Está certo – resignou-se Annie.
Era comum que discussões entre as crianças fossem resolvidas assim, por seus
daemons, um deles se curvando à vontade do outro. Os humanos aceitavam o
desfecho sem ressentimento, de modo que Lyra sabia que Annie ia fazer o que ela
pedisse.
Todas forneceram peças de roupa para fazer volume sob as cobertas de Lyra
como se ela estivesse deitada e prometeram dizer que nada sabiam sobre aquilo tudo.
Então Lyra escutou para ter certeza de que ninguém vinha, subiu na mesinha-decabeceira,
levantou a placa e puxou-se para cima.
– Não falem nada! – sussurrou para os três rostos que a observavam.
Então recolocou com cuidado a placa no lugar e olhou em volta.
Estava agachada sobre uma estreita canaleta de metal presa numa grade de
metal. As placas do teto eram ligeiramente translúcidas, de modo que passava alguma
luz de baixo, e Lyra viu que aquele espaço baixo onde estava- cerca de meio metro de
altura – estendia-se para todos os lados. Estava apinhado de canos e tubos de metal,
e seria fácil perder a direção, mas se ela permanecesse em cima das canaleras e
evitasse colocar peso em cima das placas, e contanto que não fizesse barulho,
conseguiria atravessar a Estação de uma ponta à outra.
– Igualzinho lá na Jordan, Pantalaimon – ela sussurrou.
– A gente espionando a Sala Privativa.
– Se você não tivesse feito aquilo, nada disso teria acontecido – ele cochichou de
volta.
– Então tenho que consertar o que fiz, não é?
Ela marcou as direções, calculando aproximadamente onde ficaria a sala de
reuniões, e então partiu. Era uma viagem muito difícil; ela precisava engatinhar, pois
não caberia ali de outra maneira, e de vez em quando tinha que se espremer sob um
tubo de metal grande e quadrado, ou então passar por cima de canos de aquecimento.
As canaletas de metal pelas quais ela engatinhava seguiam o topo das paredes
internas, pelo que ela podia perceber, e enquanto permanecesse nelas, sentia uma
reconfortante solidez; mas eram estreitas e tinham as bordas aguçadas, a tal ponto
que ela cortou os nós dos dedos das mãos e um joelho, e em pouco tempo estava toda
doída, com cãibras e muito empoeirada.
Porém sabia mais ou menos onde estava e conseguia ver o volume escuro dos
seus agasalhos sobre o teto do dormitório, como um marco para guiá-la de volta.
Passou por alguns aposentos vazios, onde as placas não estavam iluminadas por baixo;
de vez em quando, ouvia vozes e parava para escutar, mas eram apenas as
cozinheiras na cozinha ou as enfermeiras reunidas naquilo que Lyra concluiu ser sua
sala de descanso. Elas nada diziam de interessante, de modo que Lyra seguiu em
frente. Finalmente chegou à área onde deveria estar a sala de reuniões, segundo seus
cálculos; de fato, havia uma área sem canalização, onde tubos do ar-condicionado e da
calefação desciam por um canto e onde todas as placas num espaço amplo e
retangular estavam iluminadas. Ela colou o ouvido numa placa e ouviu um murmúrio de
vozes adultas masculinas; percebeu que tinha encontrado o lugar que procurava.
Com muito cuidado, ela avançou centímetro a centímetro até ficar o mais perto
possível das pessoas. Então estendeu-se de corpo inteiro sobre a canaleta de metal e
inclinou a cabeça de lado para melhor escutar.
Ouviu sons ocasionais de talheres e de louça: eles estavam jantando enquanto
conversavam. Parecia haver quatro vozes, inclusive a da Sra. Coulter. As outras eram
masculinas. Pareciam estar discutindo a fuga dos daemons.
– Mas quem está encarregado de supervisionar aquela seção? – perguntou a voz
suave e musical da Sra. Coulter.
– Um estudante de pesquisa chamado McKay- disse um dos homens. – Mas
existem mecanismos automáticos para impedir esse tipo de coisa...
– Que não funcionam – interrompeu ela.
–Com todo respeito, eles funcionam, sim, Sra. Coulter.
McKay afirma que trancou todas as caixas quando saiu de lá às 11 horas de hoje.
A porta externa é claro que não teria sequer sido aberta, pois ele entrou e saiu pela
porta interna, como fazia normalmente. É preciso teclar um código no aparelho que
controla as fechaduras, e isso fica registrado na memória do aparelho. Se isso não for
feito, o alarme toca.
– Mas o alarme não tocou – ela contestou.
– Tocou, sim. Infelizmente ele tocou quando todos estavam do lado de fora
tomando parte no treinamento de incêndio.
– Mas quando vocês tornaram a entrar...
– Infelizmente os dois alarmes estão no mesmo circuito; é uma falha de
infraestrutura que terá de ser retificada. Aconteceu que quando o alarme de incêndio foi
desligado depois do treinamento, o alarme do laboratório também foi. Mesmo assim o
fato teria sido percebido, por causa das verificações normais que são feitas depois de
qualquer quebra da rotina; mas a essa altura, Sra. Coulter, a senhora chegou
inesperadamente, e como deve se lembrar, pediu especificamente para ver a equipe do
laboratório imediatamente, na sua sala. Conseqüentemente, passou-se algum tempo
até alguém voltar ao laboratório.
– Entendo – disse a Sra. Coulter em tom frio. –Nesse caso, os daemons devem
ter sido libertados durante o treinamento. E isso amplia alista de suspeitos para todos
os adultos da Estação. Já pensou nisso?
– A senhora já pensou que pode ter sido feito por uma criança? – falou outra voz.
Ela ficou em silêncio, e o homem continuou:
– Cada adulto tinha uma tarefa a cumprir. Cada uma ia requerer atenção total, e
todas elas foram cumpridas. Não há possibilidade de que alguém da equipe pudesse
ter aberto a porta. Nenhuma possibilidade. Então, ou alguém entrou de fora com a
intenção de fazer isso, ou uma das crianças conseguiu entrar, abrir a porta e as caixas
e voltar para a frente do prédio principal.
– E que é que os senhores estão fazendo para investigar? – ela perguntou. –
Aliás, não quero saber. Por favor compreenda, Dr. Cooper, não estou criticando por
maldade. Temos que ser extraordinariamente cautelosos. Foi uma falha atroz colocar
os dois alarmes no mesmo circuito. Isso tem que ser corrigido imediatamente. Com
certeza, o oficial tártaro encarregado da guarda poderia ajudar na investigação?
Menciono isso como mera possibilidade. Aliás, onde estavam os tártaros durante o
treinamento? Imagino que já tenha pensado nisso.
– Já pensei, sim – disse o homem em tom cansado. – O corpo de guarda estava
inteiramente ocupado patrulhando. Todos os homens. Eles mantêm registro de tudo,
meticulosamente.
– Tenho certeza de que vocês estão fazendo o possível - disse ela. – Bem, é
isso. Uma pena. Mas vamos mudar de assunto. Fale-me do novo seccionador.
Lyra sentiu um arrepio de medo. Aquilo só podia significar uma coisa.
– Ah, houve um grande progresso – disse o médico, aliviado ao ver que a
conversa tomava outro rumo. – Com o primeiro modelo, nós não conseguíamos anular
inteiramente o risco da morte do paciente por choque, mas isso foi muito aperfeiçoado.
– Os escraelingues faziam isso muito melhor a mão - disse o homem que ainda
não tinha falado.
– Séculos de prática – disse o outro homem.
– Mas, durante algum tempo, a única opção era simplesmente usar a força –
disse o principal interlocutor. – Por mais que isso perturbasse os operadores adultos.
Todos se lembram que tivemos que despedir um bom número deles por problemas de
ansiedade causada pela tensão. Mas o primeiro grande progresso foi o uso da
anestesia combinado com o bisturi anbárico de Maystadt. Conseguimos reduzir a
menos de cinco por cento o risco de morte por choque operatório.
– E o novo instrumento? – a Sra. Coulter quis saber.
Lyra estava tremendo. O sangue pulsava em seus ouvidos, e Pantalaimon
apertava seu corpo de arminho de encontro a ela, enquanto sussurrava:
– Psiu, Lyra, eles não vão fazer isso, nós não vamos deixar...
– Sim, foi uma curiosa descoberta do próprio Lorde Asriel que nos deu a pista
para esse novo método. Ele descobriu que uma liga de manganês e titânio tinha a
propriedade de isolar o corpo e o daemon. Aliás, que é que anda acontecendo com
Lorde Asriel?
– Talvez você não tenha ficado sabendo, mas Lorde Asriel está sob sentença de
morte pendente. Uma das condições do exílio dele em Svalbard era desistir totalmente
da sua obra filosófica. Infelizmente ele conseguiu obter livros e material, e levou suas
pesquisas heréticas até o ponto em que é positivamente perigoso deixá-lo vivo. De
qualquer maneira, parece que o Tribunal Consistorial de Disciplina começou a debater a
questão da sentença de morte, e a probabilidade é de que ele seja executado.
– Mas quanto ao seu instrumento novo, doutor, como é que ele funciona?
– Ah, sim... Sentença de morte? Meu Deus! Ah, sim, desculpe-me, o novo
instrumento. Estamos pesquisando o que acontece quando a intercisão é feita com o
paciente consciente, e é claro que isso não podia ser feito pelo processo de Maystadt.
De modo que desenvolvemos uma espécie de guilhotina, pode-se dizer. A lâmina é feita
da liga de manganês e titânio, e a criança é colocada num compartimento, como uma
cabine, de tela feita da mesma liga, com o daemon num compartimento igual, ligado ao
primeiro. Então a lâmina cai entre eles, cortando o elo entre os dois. Então se tornam
entidades separadas.
– Eu gostaria de assistir – ela declarou. – E espero que seja logo. Mas agora
estou cansada, acho que vou para a cama. Quero ver todas as crianças amanhã.
Vamos descobrir quem foi que abriu aquela porta.
Houve o som de cadeiras empurradas, cumprimentos e uma porta fechando-se.
Então Lyra ouviu os outros tornarem a sentar-se e continuarem a conversa, mas em
tom mais baixo.
– Que é que Lorde Asriel está planejando?
– Acho que ele tem uma idéia inteiramente nova da natureza do Pó. O caso é
esse. É profundamente herética, entendem, e o Tribunal Consistorial de Disciplina não
pode permitir outra interpretação além da autorizada. Além disso, ele quer fazer
experiências...
– Experiências? Com o Pó?
– Psiu, fale mais baixo...
– Acha que ela vai fazer um relatório negativo?
– Não, não. Acho que você lidou muito bem com ela.
– A atitude dela me preocupa...
– Não é uma atitude filosófica?
– Exatamente. É interesse pessoal. Não gosto de usar esta palavra, mas é quase
sinistro.
– Você está exagerando.
– Mas você se lembra das primeiras experiências, quando ela estava tão ansiosa
para ver as separações...
Lyra não conseguiu controlar-se: um gemido escapou de seus lábios e ao mesmo
tempo ela estremeceu, e seu pé esbarrou numa trave.
– Que foi isso? – Foi no teto! – Depressa!
O som de cadeiras afastadas, pés correndo, uma mesa empurrada pelo chão.
Lyra tentou arrastar-se para longe dali, mas havia pouco espaço, e ela não conseguiu
mover-se mais que alguns metros quando a placa ao seu lado foi erguida de repente, e
ela deparou com o rosto assustado de um homem. Estava tão perto que ela via todos
os pêlos do bigode dele. Ele ficou tão espantado quanto ela, porém tinha mais
liberdade de movimentos e conseguiu enfiar a mão pelo buraco e agarrar-lhe o braço.
– Uma criança!
– Não deixe que fuja...
Lyra enfiou os dentes na mão grande e sardenta do homem. Ele gritou, mas não
soltou o braço dela, mesmo quando os dentes lhe rasgaram a pele. Pantalaimon
rosnava e cuspia, mas isto não adiantava, o homem era muito mais forte que ela;
puxou-a até que ela teve que soltar a trave à qual se agarrava com o outro braço, e
metade do seu corpo caiu pelo buraco. Ainda não tinha feito um único som. Enroscou
as pernas na borda aguçada de metal e lutou de cabeça para baixo, arranhando,
mordendo, socando e cuspindo com enorme fúria. Os homens ofegavam e
resmungavam de dor ou cansaço, mas não cessavam de puxá-la para baixo.
E de repente ela perdeu as forças.
Era como se uma estranha mão tivesse penetrado onde nenhuma mão tinha o
direito de ir e arrancado dela algo profundo e precioso.
Ela sentiu-se fraca, tonta, nauseada e frouxa com o choque.
Um dos homens estava segurando Pantalaimon.
Ele tinha agarrado o daemon de Lyra com suas mãos humanas, e o coitado do
Pan tremia, quase louco de horror e agonia.
Em forma de gato-do-mato, seu pêlo ora ficava opaco de fraqueza, ora brilhava
anbaricamente de terror... Ele curvava-se para a sua Lyra, que estendia ambas as
mãos em sua direção.
Os dois ficaram imóveis. Estavam presos.
Ela sentia aquelas mãos... Aquilo não era correto... Era proibido tocar... Era
errado...
– Ela estava sozinha?
Um homem estudava o espaço acima do teto.
– Parece que sim...
– Quem é ela?
– A garota nova.
– Aquela que os caçadores samoiedes...
– É.
– Será que foi ela... os daemons...
– Pode muito bem ter sido. Mas não sozinha.
– Será que devíamos contar...
– Acho que isso ia nos deixar mal, não é?
– Concordo. É melhor ela não ficar sabendo.
– Mas que é que vamos fazer?
– Ela não pode voltar para junto das outras crianças.
– Impossível!
– Só podemos fazer uma coisa, eu acho.
– Agora?
– Tem que ser. Não podemos deixar para amanhã. Amanhã ela vai querer assistir
.
– Podíamos fazer nós mesmos. Não há necessidade de envolver outras pessoas.
O homem que parecia ser o chefe, aquele que não estava segurando Lyra nem
Pantalaimon, batia nos dentes com a unha.
Seus olhos nunca estavam parados; iam de um lado para o outro rapidamente.
Finalmente ele assentiu com um gesto de cabeça.
– Agora. Façam agora. Senão ela vai falar. O choque vai impedir pelo menos
isso. Ela não vai se lembrar de quem é, o que viu, o que ouviu... Vamos.
Lyra não conseguia falar; mal conseguia respirar. Teve que permitir que a
carregassem através da Estação pelos corredores brancos e desertos, passando por
aposentos onde lâmpadas anbáricas zumbiam, pelos dormitórios onde as crianças
dormiam com seus daemons ao lado, compartilhando seus sonhos; a cada segundo do
caminho, ela só enxergava Pantalaimon e ele se debruçava para ela, olhos nos olhos.
Então uma porta foi aberta através de uma grande roda; houve um sibilo de ar, e
eles entraram numa câmara profusamente iluminada, com azulejos brancos brilhando e
aço inoxidável. O medo que ela sentia era quase uma dor física – aliás, tornou-se
mesmo uma dor física quando empurraram Lyra e Pantalaimon na direção de uma
grande gaiola de tela prateada, acima da qual uma grande lâmina prateada estava
prestes a separá-los para todo o sempre.
Ela finalmente conseguiu gritar. O som repercutiu ruidosamente nas superfícies
azulejadas, mas a porta pesada tinha se fechado com um sibilo; ela podia gritar para
sempre, mas nenhum som escaparia dali.
Mas Pantalaimon, em resposta, havia se desvencilhado daquelas mãos odiosas –
ele era leão, era águia: atacou-os selvagemente com as garras, batendo as grandes
asas, depois virou lobo, urso, gato-do-mato, rosnando, arranhando, uma sucessão de
transformações rápidas demais para o olho, e o tempo todo saltando, esvoaçando,
evitando as mãos desajeitadas que agarravam o Vazio. Mas eles também tinham seus
daemons. Não eram dois contra três, eram dois contra seis. Um texugo, uma coruja e
um babuíno juntaram-se aos esforços para subjugar Pantalaimon, enquanto Lyra lhes
gritava:
– Por quê? Por que logo vocês estão fazendo isso? Vocês têm que nos ajudar.
Não deviam estar ajudando a eles!
Ela chutava e mordia com mais afã, até que o homem que a segurava deu um
grito e soltou-a por um momento – e ela se viu livre, e Pantalaimon lançou-se sobre ela
como um raio. Ela o apertou contra o peito, e ele enfiou as garras de gato-do-mato na
carne dela, e a dor era agradável.
–Nunca! Nunca! Nunca! – ela gritou, e encostou-se à parede para defendê-lo até a
morte de ambos.
Mas eles caíram sobre ela novamente, três homens grandes e brutais, e ela era
apenas uma criança apavorada; eles lhe arrancaram Pantalaimon, jogaram-na num lado
da gaiola de tela e levaram o daemon, ainda lutando, para o outro lado. Havia uma
barreira de tela entre eles, mas ele ainda fazia parte dela, ainda estavam unidos. Por
mais um segundo, ele ainda era a alma dela.
Então, acima dos grunhidos dos homens e do próprio choro, Lyra ouviu um som
de zumbido e viu um dos homens (com o nariz sangrando) mexendo nos botões de um
painel. Os outros dois ergueram os olhos, e ela seguiu o olhar deles. A grande lâmina
prateada erguia-se lentamente, refletindo o brilho da luz.
O último instante de vida completa ia ser o pior de todos.
– Que é que está acontecendo aqui? – perguntou uma voz leve e musical.
A voz dela. Tudo ficou imóvel.
– Que é que vocês estão fazendo? E quem é esta criança...
Ela não completou a pergunta, pois nesse instante reconheceu Lyra. Através das
lágrimas, Lyra viu-a cambalear e agarrar-se a uma cadeira; o tão lindo e impassível
rosto ficou, por um instante, contorcido e aterrorizado.
– Lyra! – ela conseguiu dizer.
No mesmo instante, o macaco dourado afastou-se dela num salto e arrancou
Pantalaimon de dentro da gaiola de tela, ao mesmo tempo em que Lyra caía para fora
da outra gaiola.
Pantalaimon desvencilhou-se das patas solícitas do macaco e foi se aninhar nos
braços de Lyra.
– Nunca, nunca - ela sussurrou.
Ele apertou-se contra ela, e os dois assim ficaram, como náufragos
estremecendo numa costa desolada. Ela mal ouviu a Sra. Coulter falando com os
homens e sequer conseguiu interpretar o tom da voz da mulher. Então todos saíram
daquele aposento odioso, a Sra. Coulter amparando Lyra pelo corredor, entraram por
outra porta, um quarto de dormir, luz suave, perfume no ar.
A Sra. Coulter colocou-a delicadamente sobre a cama. O braço de Lyra apertava
tanto Pantalaimon que ela tremia com o esforço. Uma carinhosa mão acariciou-lhe a
testa.
– Minha querida criança – disse a voz doce. –Como foi que você veio parar aqui?

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