sábado, 18 de outubro de 2014

17- As Bruxas

Lyra gemia e tremia incontrolavelmente, como se tivesse sido retirada de
uma água tão fria que quase congelara seu coração. Pantalaimon simplesmente
apertara-se contra a pele nua dentro das roupas de Lyra, acalmando-a com o seu
amor, mas durante todo o tempo ele estava consciente da Sra. Coulter, que se
atarefava preparando uma bebida ou algo assim, e principalmente do macaco
dourado, cujos dedinhos tinham percorrido o corpo de Lyra quando só Pantalaimon
poderia ter percebido e tinham sentido a sacola de lona pendurada na cintura dela.
–Sente-se um pouco, querida, e beba isto – disse a Sra. Coulter.
Seu braço carinhoso rodeou os ombros de Lyra e levantou-a. Lyra ia resistir,
mas relaxou imediatamente, quando Pantalaimon transmitiu-lhe um pensamento:
"Só ficaremos em segurança se soubermos fingir. " Ela abriu os olhos e percebeu que
eles estavam cheios de lágrimas, e para sua própria surpresa e vergonha pôs-se a
chorar incontrolavelmente.
A Sra. Coulter, com frases de consolo, colocou a bebida nas mãos do macaco
enquanto enxugava os olhos de Lyra com um lencinho perfumado.
–Chore à vontade, querida - disse, com sua voz suave.
Lyra então resolveu parar assim que conseguisse. Esforçou-se para conter as
lágrimas, apertou os lábios e engoliu os soluços que ainda lhe sacudiam o peito.
Pantalaimon fazia o mesmo: enganá-los, enganá-los. Ele se tornou um rato e
esgueirou-se para longe da mão de Lyra para farejar timidamente a bebida na mão do
macaco. Era inócua: um chá de camomila, nada mais. Ele voltou para o ombro de Lyra
e sussurrou:
– Beba.
Ela sentou-se e pegou a xícara quente com as duas mãos, bebericando e
soprando para esfriar o chá. Mantinha os olhos baixos. Tinha que representar melhor
do que jamais fizera na vida.
– Lyra, querida- murmurou a Sra. Coulter acariciando-lhe os cabelos. – Pensei
que tínhamos perdido você para sempre! Que foi que aconteceu? Você se perdeu?
Alguém levou-a do apartamento?
– Foi – Lyra sussurrou.
– Quem fez isso, querida?
– Um homem e uma mulher.
– Convidados da festa?
– Acho que sim. Disseram que a senhora precisava de uma coisa que estava no
andar térreo, e eu fui buscar. Eles me agarraram e me levaram num carro. Mas quando
pararam, eu fugi depressa e me escondi, e eles não me acharam. Mas eu não sabia
onde estava...
Outro soluço a interrompeu, agora mais fraco, e ela podia fingir que ele tinha sido
provocado pela história que estava contando.
– E fiquei vagando, tentando encontrar o caminho de volta, mas então os Papões
me pegaram... E me puseram numa camionete com outras crianças e me levaram para
um lugar, uma casa muito grande, não sei onde era.
A cada segundo que se passava, a cada frase inventada, ela se sentia um pouco
mais forte. E agora que estava fazendo algo difícil e costumeiro e nunca muito
previsível, que era mentir, ela tornou a sentir uma espécie de segurança, o mesmo
senso de complexidade e controle que o aletômetro lhe dava. Tinha que tomar cuidado
para não dizer alguma coisa obviamente impossível; devia ser vaga em certas partes e
inventar detalhes plausíveis em outras; em suma, tinha que ser uma artista.
– Quanto tempo você ficou naquela casa? – quis saber a Sra. Coulter.
A viagem de Lyra pelos canais e o tempo que ela passara com os gípcios tinham
levado semanas; ela precisava justificar esse tempo. Então inventou uma viagem com
os Papões para Trollesund, e depois uma fuga, cuja invenção lhe deu a oportunidade
de mencionar muitos detalhes de suas observações da cidade; e algum tempo
trabalhando como criada no Bar de Einarsson, e então algum tempo trabalhando para
uma família de fazendeiros no interior, depois presa pelos samoiedes e levada para
Bolvangar.
– E eles iam... iam cortar...
– Psiu, querida. Vou descobrir o que está acontecendo.
– Mas por que iam fazer isso? Nunca fiz nada errado! Todas as crianças têm
medo do que acontece lá, e ninguém sabe o que é. Mas é horrível. É a pior coisa... Por
que estão fazendo isso, Sra. Coulter? Por que são tão cruéis?
– Pronto, pronto... Você está em segurança, minha querida. Nunca farão isso com
você. Agora que a encontrei, nunca mais estará em perigo. Ninguém vai lhe fazer mal,
querida Lyra; ninguém jamais vai magoá-la...
– Mas fazem isso com outras crianças! Por quê?
– Ah, meu amor...
– É o Pó, não é?
– Eles lhe disseram isso? Os médicos disseram isso?
– As crianças sabem. Todas falam sobre isso, mas ninguém sabe direito! E quase
fizeram aquilo comigo... A senhora tem que me dizer! A senhora agora não tem mais
direito de esconder!
– Lyra... Lyra, querida, são coisas complicadas, o Pó e o resto. Não é assunto
para uma criança se preocupar. Mas os médicos fazem isso pelo bem da própria
criança, meu amor. O Pó é uma coisa ruim, uma coisa errada, uma coisa má e
perversa. Os adultos e seus daemons estão infectados de Pó tão profundamente que
para eles é tarde demais. Mas uma simples operação numa criança faz com que
fiquem a salvo. O Pó não vai mais se prender a elas. Elas ficam seguras e felizes e...
Lyra pensou no pequeno Tony Makarios; inclinou-se para a frente e teve ânsias
de vômito. A Sra. Coulter soltou-a.
–Você está bem, minha querida? Vá ao banheiro...
Lyra engoliu em seco e esfregou os olhos.
– Não precisam fazer isso com a gente – disse. –Podiam nos deixar em paz.
Aposto que Lorde Asriel não deixaria eles fazerem isso, se soubesse o que está
acontecendo. Se ele tem o Pó e a senhora também, e o Reitor da Jordan e todos os
adultos também, deve estar certo. Quando eu sair, vou contar isso a todas as crianças
do mundo. De qualquer maneira, se é uma coisa tão boa, por que a senhora impediu
que fizessem comigo? Se fosse uma coisa boa, a senhora devia ter deixado. Devia
ficar feliz.
A Sra. Coulter sacudiu a cabeça e sorriu um sorriso triste e sábio.
– Querida, certas coisas boas doem um pouco, e naturalmente outras pessoas
ficam perturbadas se você fica... Mas não significa que levem seu daemon para longe
de você. Meu Deus, muitos adultos aqui fizeram essa operação. As enfermeiras
parecem bastante felizes, não parecem?
Lyra pestanejou; de repente entendia a estranha apatia e falta de curiosidade das
enfermeiras, o modo como seus pequenos daemons pareciam sonâmbulos.
Ela pensou: não diga nada. E ficou de boca fechada.
– Minha querida, ninguém sonharia em fazer uma cirurgia numa criança sem
realizar testes antes. E ninguém, nem em mil anos, conseguiria afastar uma criança e
seu daemon! Tudo que acontece é um pequeno corte, e então fica tudo bem. Para
sempre! Entende, quando a pessoa é criança, o daemon dela é um amigo e
companheiro maravilhoso, mas na idade que chamamos de puberdade, a idade que
você logo terá, querida, os daemons trazem todo tipo de pensamentos e sentimentos
perturbadores, e é isso que deixa o Pó entrar. Uma pequena operação antes disso faz
com que a criança nunca se perturbe. E o daemon continua com ela, só que...
desligado. Como um... como um maravilhoso bichinho de estimação, por exemplo. O
melhor bichinho de estimação do mundo! Você não gostaria disso?
Ah, que hipócrita perversa, quantas mentiras deslavadas ela dizia! E mesmo se
Lyra não soubesse que eram mentiras (Tony Makarios, os daemons nas caixas de
vidro...), ela teria odiado aquela idéia: sua alma querida, o caro companheiro do seu
coração, cortado dela e reduzido a um bichinho de estimação?
Lyra quase fervia de ódio, e em seus braços Pantalaimon transformou-se num
gato-do mato, a mais feia e perversa de todas as suas formas, e rosnou.
Mas nada disseram. Lyra segurou Pantalaimon com força e deixou a Sra. Coulter
acariciar seus cabelos.
– Beba seu chá – disse a Sra. Coulter em tom carinhoso.
– Vou mandar preparar uma cama para você aqui. Não é preciso voltar para o
dormitório com as outras garotas, agora que tenho de volta minha pequena secretária.
A minha favorita! A melhor secretária do mundo. Reviramos Londres inteira atrás de
você, sabia, minha querida? E a polícia procurou em todas as cidades. Ah, senti tanta
saudade! Nem sei dizer como estou feliz por encontrá-la de novo!
Durante todo esse tempo, o macaco dourado mostrava-se inquieto, num minuto
empoleirado na mesa balançando o rabo, no outro minuto agarrado à Sra. Coulter,
falando baixinho em seu ouvido, no minuto seguinte andando de um lado para outro com
a cauda ereta. Ele estava mostrando a impaciência que a Sra. Coulter sentia e que
finalmente ela não conseguiu mais controlar.
– Lyra, minha querida – disse. – Acho que o Reitor da Jordan lhe deu uma coisa
antes de você ir embora. Estou certa? Ele lhe deu um aletômetro. O problema é que o
instrumento não era dele, ele apenas tomava conta. É uma coisa valiosa demais para
ficar por aí. Só existem dois ou três no mundo inteiro, sabia? Acho que o Reitor lhe deu
o aletômetro na esperança de que ele caísse nas mãos de Lorde Asriel. Ele lhe disse
para não me contar, não foi?
Lyra torceu a boca.
– É, estou vendo que sim. Bom, não tem importância, querida, porque você não
me contou, certo? Então não quebrou sua promessa. Mas escute, querida, é uma coisa
que devia ser guardada com cuidado. É tão rara e delicada que infelizmente não
podemos deixá-la correr riscos.
– Por que Lorde Asriel não pode ter essa coisa? –Lyra perguntou.
– Por causa do que ele está fazendo. Você sabe que ele foi exilado porque
pretende fazer uma coisa errada e perigosa. Ele precisa do aletômetro para terminar
seu plano, mas pode acreditar, minha querida, a última coisa que alguém devia fazer é
dar o aletômetro a ele. Infelizmente o Reitor da Jordan estava enganado. Mas agora
que você sabe, não seria melhor me dar para guardar? Você ficaria livre de ter que
carregar isso por aí e da preocupação de tomar conta dele. E você deve ter ficado
mesmo curiosa, querendo saber para que servia uma coisa boba e velha como essa...
Lyra perguntou-se como foi que tinha um dia achado aquela mulher fascinante e
inteligente.
– Então, se você está com ele agora, querida, é melhor me dar para eu tomar
conta. Está pendurado na sua cintura, não está? É, foi inteligente, guardar assim...
Ela levantou a saia de Lyra e começou a desamarrar o cinto de lona. Lyra ficou
tensa. O macaco dourado estava agachado no pé da cama, tremendo de ansiedade,
as mãozinhas pretas junto à boca. A Sra. Coulter puxou o cinto da cintura de Lyra e
desabotoou a sacola. Tinha a respiração ofegante. Ela tirou o embrulho de veludonegro
e desdobrou o pano, encontrando a lata que Iorek Byrnison tinha feito.
Pantalaimon era novamente um gato pronto para saltar.
Lyra puxou as pernas, afastando-as da Sra. Coulter, e girou-as para o chão, para
que ela também pudesse correr quando chegasse a hora.
– Que é isso? – perguntou a Sra. Coulter, como se achasse graça. – Que lata
engraçada! Você colocou ele aí dentro para ficar seguro, minha querida? Todo esse
musgo... Você foi cuidadosa, não foi? Outra lata, dentro da primeira! E soldada! Quem
fez isso, minha querida?
Ela estava preocupada demais em abrir a lata para esperar a resposta. Tirou da
bolsa um canivete com várias ferramentas, abriu uma lâmina e enfiou sob a tampa.
No mesmo instante, um zumbido furioso encheu o quarto.
Lyra e Pantalaimon ficaram imóveis. A Sra. Coulter, perplexa e curiosa, puxou a
tampa, e o macaco dourado debruçou-se para ver de perto.
Então, como uma centelha, a forma negra da mosca-espiã saiu da lata e colidiu
com força com o focinho do macaco.
O animal gritou e jogou-se para trás; naturalmente, a Sra.Coulter também estava
sentindo a dor e o medo do macaco e gritou junto com ele, e então o pequeno demônio
mecânico virou-se para ela e veio em direção ao seu rosto.
Lyra não hesitou; quando Pantalaimon saltou para a porta, ela foi atrás, abriu-a e
correu como nunca tinha corrido na vida.
–O alarme de incêndio! – Pantalaimon grunhiu, correndo na frente dela.
Ela viu um alarme na parede e quebrou o vidro com um soco desesperado. E
tornou a sair correndo na direção dos dormitórios, acionando todos os alarmes que
encontrava, e então os corredores começaram a encher-se de pessoas olhando em
volta à procura do incêndio.
A essa altura, ela estava perto da cozinha; Pantalaimon mandou-lhe um
pensamento e ela entrou correndo. Momentos depois, tinha aberto todos os bicos de
gás e jogado um fósforo aceso no bico mais próximo. Depois pegou um saco de farinha
e jogou-o com força de encontro à beirada da mesa, explodindo o saco e enchendo o
ar de branco, pois ouvira dizer que a farinha no ar explode perto do fogo.
Enquanto isto, saiu correndo para seu próprio dormitório. Os corredores agora
estavam apinhados, com crianças correndo para todos os lados, cheias de excitação,
pois o plano de fuga havia se espalhado. As mais velhas iam para os depósitos onde as
roupas ficavam guardadas, levando consigo as mais novas. Os adultos tentavam
controlar tudo, e nenhum deles sabia o que estava acontecendo. Por toda parte havia
pessoas gritando, empurrando, chorando.
Lyra e Pantalaimon atravessaram tudo aquilo, seguindo sempre na direção do
dormitório; assim que lá chegaram ouviram uma explosão surda que sacudiu o prédio.
As outras meninas tinham fugido, o lugar estava deserto. Lyra arrastou a mesade-
cabeceira para o canto, subiu nela, puxou suas roupas do teto, procurou o
aletômetro, encontrou-o bem seguro. Vestiu-se depressa, puxando o capuz para
encobrir o rosto, e então Pantalaimon, uma andorinha junto à porta, avisou:
– Agora!
Ela correu para fora. Por sorte algumas crianças que já haviam encontrado
agasalhos estavam correndo pelo corredor na direção da entrada principal, e ela
juntou-se ao grupo, suando, o coração disparado, sabendo que tinha que fugir ou então
morreria.
Porém o caminho estava bloqueado; o incêndio na cozinha se espalhara, e a
explosão – por causa do gás ou da farinha - tinha derrubado parte do telhado. As
pessoas subiam por cima das vigas retorcidas para chegar ao frio cortante do ar livre.
O cheiro de gás era forte. Então houve outra explosão, mais forte que a primeira. O
impacto derrubou muita gente, e gritos de medo e dor encheram o ar.
Lyra lutou para levantar-se, com Pantalaimon gritando "Por aqui! Por aqui!", e com
esforço subiu pelos destroços. O ar estava gelado, e ela esperava que as crianças
tivessem conseguido encontrar suas roupas de frio; seria o cúmulo conseguir fugir da
Estação para morrer de frio!
Agora as chamas eram altas. Quando ela chegou ao telhado sob o céu noturno,
viu as labaredas lambendo as bordas de um grande buraco na lateral do prédio. Havia
uma multidão de crianças e adultos junto à entrada principal, mas desta vez os adultos
estavam mais agitados e as crianças estavam mais assustadas – muito mais
assustadas.
– Roger! Roger! – Lyra gritou, e Pantalaimon, com a visão aguçada de uma
coruja, avisou que já o tinha visto.
No momento seguinte, eles se encontraram.
– Diga a todos que venham comigo! – Lyra gritou no ouvido dele.
– Eles não vão... Estão apavorados...
– Conte o que eles fazem com as crianças que desaparecem! Cortam os
daemons delas com uma faca enorme. Conte o que você viu esta tarde, os daemons
que nós soltamos! Diga que isso vai acontecer com elas também se não fugirem!
Roger estava boquiaberto, horrorizado, mas conseguiu controlar-se e correu para
o grupo de crianças mais próximo. Lyra fez o mesmo, e logo as crianças agarravam-se
aos seus daemons.
– Venham comigo! – Lyra gritou. – Está vindo ajuda! Temos que sair daqui!
Vamos, corram!
As crianças ouviram e obedeceram, correndo pela praça na direção da avenida
de luzes.
Atrás delas, os adultos gritavam, e houve um estrondo quando outra parte do
prédio desabou. As centelhas subiram no ar, e as chamas incharam com o som como o
de roupa rasgada.
Porém, acima de todo esse ruído, ouviu-se outro som, terrivelmente próximo e
violento. Lyra nunca o tinha ouvido antes, mas soube imediatamente do que se tratava:
era o uivo dos daemons-lobas dos guardas tártaros. Ela sentiu uma onda de fraqueza
da cabeça aos pés, e muitas crianças estacaram, apavoradas, pois correndo surgiu o
primeiro dos guardas tártaros, rifle empunhado e a sombra enorme e cinzenta do seu
daemon logo atrás.
Então surgiu outro, e mais outro. Estavam todos de armadura, os olhos invisíveis
por trás das fendas dos elmos. Os únicos olhos à vista eram os orifícios redondos e
negros da ponta do cano dos rifles e os olhos amarelos e brilhantes das daemonslobas
acima das bocarras cheias de saliva.
Lyra hesitou. Não tinha imaginado como aquelas lobas eram apavorantes. E agora
que conhecia a tranqüilidade com que as pessoas de Bolvangar desobedeciam ao
grande tabu, ela se apavorou com a idéia daqueles dentes...
Os tártaros fizeram uma barreira na frente da entrada da avenida de luzes, com
seus daemons ao lado, disciplinadas e treinadas como eles. Logo haveria uma segunda
barreira, pois vinham mais guardas, e mais ainda atrás desses. Lyra pensou,
desesperada: crianças não podem lutar contra soldados. Não era como as batalhas
nos Barreiros de Oxford, quando ela arremessava bolas de lama nos filhos dos oleiros.
Ou talvez fosse! Ela lembrava-se de ter jogado um punhado de lama no rosto
largo de um menino da olaria que a atacava; ele havia parado para tirar a lama dos
olhos e então os aliados dela o atacaram.
Na ocasião, ela estava no meio do barro; agora estava no meio da neve.
Exatamente como tinha feito naquela tarde, mas agora com grande ansiedade,
ela fez uma bola de neve e jogou-a no soldado mais próximo.
–Joguem nos olhos! – ela gritou, e jogou outra bola de neve.
Outras crianças a imitaram, e então o daemon de alguém teve a idéia de voar ao
lado dos petardos e dirigi-los diretamente para dentro das fendas dos elmos. Logo
todos faziam isto, e em poucos momentos os tártaros estavam cambaleantes,
praguejando e tentando tirar a neve pela fenda estreita em frente aos olhos.
–Vamos! – Lyra gritou, e lançou-se pelo portão para a avenida de luzes.
Todas as crianças foram atrás dela, evitando as lobas e correndo o quanto
podiam pela avenida em direção à escuridão que as esperava.
Um oficial gritou uma ordem, e todos os rifles foram destravados ao mesmo
tempo; houve outro grito e um silêncio tenso, ouvindo-se apenas os passos e a
respiração ofegante das crianças em fuga.
Os soldados estavam fazendo pontaria. Não iam errar. Mas antes que pudessem
atirar, ouviu-se o grito de um dos tártaros e exclamações de surpresa dos outros.
Lyra estacou e virou-se para ver um homem caído na neve, com uma flecha de
ponta de penas cinzentas enfiada nas costas.
Ele se contorcia e tossia, cuspindo sangue, e os outros soldados olhavam em
volta procurando quem havia atirado a flecha, mas o arqueiro não estava à vista.
Então uma flecha veio voando do céu e atingiu outro homem na nuca. Ele caiu. O
oficial gritou, e todos olharam para o céu escuro.
– Bruxas! – disse Pantalaimon.
E eram mesmo: figuras elegantes voando lá em cima, o ar zunindo por entre
folhas dos galhos de pinheiro nubígeno em que elas voavam. Enquanto Lyra observava,
uma das figuras deu um rasante e soltou uma flecha; outro homem caiu.
Então todos os tártaros levantaram os rifles e atiraram para o alto, para nada
sombras, nuvens – , enquanto mais flechas choviam sobre eles.
Mas o oficial comandante, vendo que as crianças fugiam, mandou um
destacamento atrás delas. Algumas crianças gritaram, depois outras, e finalmente
todas pararam e viraram-se, apavoradas pela figura monstruosa que saíra da
escuridão e vinha sobre elas.
– Iorek Byrnison! – Lyra gritou, o peito quase explodindo de alegria.
O urso de armadura parecia não ter consciência de outra coisa além do seu alvo
de ataque; passou por Lyra como um raio e caiu sobre os tártaros, espalhando
soldados, daemons e rifles para todos os lados. Então parou e girou, com força e
flexibilidade, e desfechou dois socos, um para cada lado, nos guardas mais próximos.
Um daemon-loba pulou sobre ele; Iorek rasgou-lhe a carne em pleno ar, e ele caiu
sobre a neve com o sangue espirrando como se fosse fogo e ficou a contorcer-se e
uivar até desaparecer.
Seu humano morreu imediatamente.
O oficial tártaro, ao enfrentar esse ataque duplo, não hesitou, gritou uma longa
ordem, e o corpo de guarda dividiu-se em dois: um para repelir as bruxas e o grupo
maior para dominar o urso. Os soldados foram incrivelmente corajosos; ajoelharam-se
em grupos de quatro e dispararam seus rifles como se estivessem fazendo um
treinamento, e não se moveram nem mesmo quando viram Iorek vindo em sua direção.
No momento seguinte, estavam mortos.
Iorek atacou outra vez, enquanto as balas voavam à sua volta como moscas, sem
lhe fazer mal. Lyra levava as crianças para a escuridão que havia depois da avenida de
luzes. Elas deviam se afastar, pois, por mais perigosos que fossem os tártaros, muito
mais perigosos eram os adultos de Bolvangar.
De modo que ela gritou, gesticulou e empurrou para que as crianças avançassem.
Enquanto as luzes ficavam para trás, lançando sombras compridas na neve, Lyra sentia
o coração alegrar-se no frio e na pureza da escura noite do Ártico, assim como
Pantalaimon, que agora era uma lebre deliciando-se em correr pela neve.
– Aonde é que nós vamos? – alguém perguntou.
– Lá na frente só tem neve! – disse outro.
– Está vindo um grupo de resgate – Lyra lhes contou. - São uns 50 gípcios.
Aposto que alguns são parentes de vocês. Todas as famílias gípcias que perderam
uma criança mandaram alguém.
– Eu não sou gípcio – disse um menino.
– Não faz diferença. Vão levar você também.
– Para onde? – alguém perguntou em tom agressivo.
– Para casa – Lyra respondeu. – Foi para isso que eu vim, para salvar vocês, e
trouxe os gípcios até aqui para levarem vocês para casa. Só temos que andar mais um
pouquinho. O urso estava com eles, de modo que não devem estar longe.
– Viram aquele urso? – fez um menino. – Quando ele rasgou aquele daemon, o
homem morreu como se tivessem arrancado o coração dele.
– Eu nunca soube que os daemons podem ser mortos - disse outra criança.
Agora todos estavam falando; a excitação e o alívio destravara a língua de todos.
Não tinha importância que conversassem, contanto que continuassem andando.
– É verdade que eles fazem aquilo lá dentro? –perguntou uma menina.
– É, sim – Lyra confirmou. – Nunca pensei que um dia ia ver uma pessoa sem um
daemon. Mas no caminho daqui encontramos um menino sozinho, sem daemon. Ele não
parava de perguntar por ele, onde ele estava, se ele ia conseguir achá-lo. O nome dele
era Tony Makarios.
– Eu conheço! – disse alguém.
– É, levaram ele há uma semana...
– Bom, cortaram e tiraram o daemon dele – Lyra revelou, sabendo que isto os
afetaria.
– E ele morreu logo depois. E todos os daemons que eles cortam eles guardam
em caixas de vidro numa casinha lá atrás.
– É verdade, e Lyra soltou eles durante o treinamento de incêndio – disse Roger.
– É, eu vi! – disse Billy Costa. – Primeiro eu não sabia o que eram, mas vi quando
foram embora voando com aquele ganso.
– Mas por que fazem isso? – um menino quis saber. - Por que tiram os daemons
das pessoas? Isso é tortura! Por que fazem isso?
– Por causa do Pó? – sugeriu alguém.
Mas o garoto riu com zombaria.
– O Pó! – ecoou. – Isso não existe! Eles inventaram! Eu não acredito nesse Pó. –
Ei, vejam o que está acontecendo com o zepelim! - avisou alguém.
Todos olharam para trás. Além das luzes, onde o combate ainda prosseguia, o
enorme corpo da aeronave não estava mais flutuando serenamente, preso ao mastro; a
extremidade oposta estava afundando e atrás dela erguia-se um globo que parecia
ser...
– O balão de Lee Scoresby! – Lyra exclamou, batendo palmas.
As outras crianças estavam perplexas. Lyra levou-as para a frente, perguntandose
como o aeróstata tinha conseguido trazer seu balão tão longe. Era óbvio o que ele
estava fazendo, e era uma ótima idéia: encher seu balão com o gás do balão deles,
possibilitando a fuga ao mesmo tempo em que impedia a perseguição!
Algumas das crianças estavam tremendo e gemendo de frio, e seus daemons
também choravam.
– Vamos, não parem de andar, senão vão congelar- Lyra disse.
Pantalaimon, irritado com o queixume dos daemons, transformou-se num lobinho e
rosnou para o daemon-esquilo que estava deitado no ombro de sua humana gemendo
baixinho.
– Entre dentro do casaco dela! Fique maior e aqueça ela! – ordenou.
O daemon da menina, assustado, obedeceu imediatamente.
O problema era que seda carbonifera não era quente como pêlos de verdade, por
mais que fosse acolchoada. Algumas crianças pareciam novelos ambulantes, de tão
cheias de roupas, mas eram roupas feitas em fábricas e laboratórios distantes do frio,
e não eram eficazes. Os agasalhos de peles que Lyra usava tinham aparência suja e
cheiravam mal, mas conservavam o calor.
– Se não encontrarmos logo os gipcios, eles não vão durar muito – ela cochichou
a Pantalaimon.
– Então não deixe ninguém parar. Se alguém se deitar, está perdido. Sabe o que
Farder Coram disse...
Farder Coram tinha contado muitas histórias de suas viagens ao Norte. Também a
Sra. Coulter – supondo que as histórias dela fossem verdadeiras. Mas ambos foram
muito claros num ponto: era preciso continuar andando.
– Falta muito? – perguntou um menininho.
– Ela só está fazendo a gente andar até aqui para nos matar – disse uma menina.
– Prefiro aqui do que lá – disse outra criança.
– Eu não! Na Estação é quentinho, tem comida, bebida e tudo.
– Mas está pegando fogo!
– Que é que vamos fazer aqui fora? Aposto que vamos morrer de fome...
A cabeça de Lyra estava cheia de perguntas lúgubres esvoaçando como as
bruxas, céleres e inatingíveis, e em algum lugar, logo além de onde ela conseguia
alcançar, havia uma euforia e uma emoção que ela não compreendia.
Mas que lhe deu uma onda de energia, e ela puxou uma menina de dentro de um
trecho de neve solta e empurrou um menino que havia parado, gritando para todos:
–Não parem! Sigam as pegadas do urso! Ele veio com os gípcios, então o rastro
dele vai nos levar até onde eles estão! Continuem andando!
A neve começava a cair em grandes flocos; logo iria encobrir inteiramente as
pegadas de Iorek Byrnison. Agora que as luzes de Bolvangar estavam fora de vista e o
incêndio produzia apenas um leve brilho no céu, a única luz vinha do reflexo fraco do
chão coberto de neve. Nuvens espessas escondiam o céu, de modo que não havia lua
nem Aurora Boreal; mas com atenção as crianças conseguiam distinguir as pegadas
fundas de Iorek Byrnison na neve. Lyra encorajava, intimidava, batia, carregava,
xingava, levantava e arrastava crianças conforme fosse necessário, e Pantalaimon, pelo
estado do daemon de cada criança, dizia-lhe o que era preciso fazer em cada caso.
Ela repetia consigo mesma, sem cessar: vou conseguir salvar as crianças; vim até
aqui para isto, e vou conseguir, droga!
Roger seguia o exemplo dela, e Billy Costa, que enxergava melhor que a maioria,
guiava o grupo. Logo a nevasca era tão forte que eles tinham que se agarrar uns aos
outros para não se perderem, e Lyra pensou: talvez, se todos nós deitarmos bem
juntos... se fizermos buracos na neve...
Ela começava a ouvir coisas: o ronco de um motor, não o ruído pesado de um
zepelim mas um som mais alto, como o zumbido de um marimbondo. O ruído ia e vinha.
E uivos, uivos de... seriam cães? Cães de trenó? Este som também vinha de
muito longe, abafado por milhões de flocos de neve e levado por pequenas rajadas de
vento. Podia ser os cães dos trenós dos gípcios ou os espíritos selvagens que viviam
na tundra, ou até mesmo os daemons libertados chorando por suas crianças perdidas.
Ela estava vendo coisas... Não existiam luzes na neve?
Deviam ser fantasmas também... a não ser que tivessem andado em círculo e
estivessem de volta a Bolvangar.
Mas eram fachos amardados de pequenas lamparinas, e não o brilho branco de
luzes anbáricas. E estavam se movimentando, e os uivos estavam mais próximos; sem
saber se estava acordada ou dormindo, Lyra viu-se rodeada de figuras conhecidas, e
homens usando agasalhos de peles estavam amparando-a: os braços poderosos de
John Faa ergueram-na do chão, e Farder Coram estava rindo de felicidade; e através
da neve que caía ela via gípcios colocando as crianças nos trenós, cobrindo-as com
mantas de peles, dando-lhes carne de foca para mascar. E Tony Costa estava ali,
abraçando Billy várias vezes. E Roger...
– Roger vem conosco – ela disse a Farder Coram. –Era ele que eu sempre quis
salvar. Vamos voltar para a Jordan no final.
Mas que barulho...
Era outra vez o tal ruído de motor, como uma mosca-espiã enlouquecida e dez mil
vezes maior.
De repente, houve um golpe que a jogou longe, e Pantalaimon não pôde defendêla,
porque o macaco dourado...
A Sra. Coulter...
O macaco dourado lutava com Pantalaimon, mordendo-o e arranhando-o, e
Pantalaimon mudava de forma tão depressa que era difícil enxergá-lo, e não parava de
atacar: ferroava, arranhava, mordia. Enquanto isto, a Sra. Coulter, cujo rosto
emoldurado pelas peles era uma máscara de sentimentos intensos, arrastava Lyra para
um trenó motorizado, e Lyra lutava tanto quanto o seu daemon. A neve era tão espessa
que elas pareciam estar isoladas, e os faróis anbáricos do trenó mostravam apenas os
flocos caindo pesadamente.
–Socorro! – Lyra gritou para os gípcios que nada conseguiam enxergar. – Me
ajudem! Farder Coram! Lorde Faa! Ah, Deus, socorro!
A Sra. Coulter bradou uma ordem na língua dos tártaros do Norte. E eles
surgiram, um pelotão armado de rifles, os daemons-lobas rosnando ao lado deles. O
chefe viu a Sra. Coulter lutando e levantou Lyra com uma das mãos como se ela fosse
uma boneca, jogando-a dentro do trenó onde ela caiu, fraca e tonta.
Um rifle disparou, depois outro: os gípcios tinham percebido o que estava
acontecendo. Mas é perigoso atirar num alvo que não se pode ver; os tártaros, agora
formando um grupo em volta do trenó, podiam atirar à vontade, mas os gípcios não
ousavam, por medo de atingir Lyra.
Ah, que amargura ela sentia! E que cansaço!
Ainda tonta, com a cabeça zunindo, ela se ergueu e viu Pantalaimon ainda lutando
desesperadamente com o macaco, seus dentes de carcaju fincados nos braços
dourados, sem mudar de forma, apenas resistindo. E quem era aquele?
Não era Roger?
Sim, Roger, atacando a Sra. Coulter com punhos e pés, batendo a cabeça contra
a dela, até ser derrubado por um tártaro como se fosse uma mosca. Era tudo
fantasmagórico: branco, preto, um clarão verde, sombras, luzes disparadas...
De repente, um vulto negro tapou os flocos que caíam: Iorek Byrnison, com o
ruído de ferro roçando em ferro. No momento seguinte, as grandes mandíbulas e as
garras afiadas puseram-se em ação...
Então alguma coisa poderosa levantou-a, e ela puxou Roger consigo, arrancandoo
das mãos da Sra. Coulter, os daemons das duas crianças em forma de pássaros
voejando assustados enquanto um pássaro maior voava em torno deles, e então Lyra
viu, no ar a seu lado, uma bruxa, uma daquelas figuras negras e elegantes que ela vira
no céu, mas agora bem perto; e havia um arco nas mãos nuas da bruxa, que estendeu
os braços pálidos e nus (naquele frio!) para retesar o arco e enviar uma flecha para
dentro da fenda dos olhos do elmo de um tártaro a um metro de distância...
A flecha entrou pela fenda e saiu do outro lado, e o daemon-loba do soldado
desapareceu em pleno salto, antes de seu humano atingir o chão.
Lyra e Roger foram então erguidos no ar, agarrados, com dedos cada vez mais
fracos, a um galho de pinheiro nubígeno, onde a jovem bruxa estava sentada, tensa e
graciosamente equilibrada; ela então inclinou-se para a esquerda, de onde alguma
coisa enorme surgia, e então o solo.
Eles caíram na neve junto à cesta do balão de Lee Scoresby.
–Pule para dentro e traga o seu amigo – falou o texano.
–Viu aquele urso?
Lyra viu três bruxas segurando uma corda passada em volta de uma pedra,
prendendo o balão à terra.
– Entra aí! – ela gritou para Roger, apressando-se a subir pela borda da cesta e
cair do lado de dentro.
Logo em seguida Roger caiu por cima dela, e então um poderoso som entre um
rugido e um rosnado sacudiu o próprio chão.
– Vamos, Iorek! Embarque, velho amigo! – gritou Lee Scoresby.
E o urso entrou na cesta, produzindo um terrível ruído de madeira forçada.
Então uma rajada de ar mais leve afastou por um instante a neblina e a neve, e
Lyra conseguiu ver tudo que estava acontecendo em volta deles. Viu um grupo de
gípcios sob o comando de John Faa atacando a retaguarda dos tártaros, empurrandoos
na direção das ruínas flamejantes de Bolvangar; viu os outros gípcios ajudando cada
criança nos trenós, cobrindo-as com mantas; viu Farder Coram olhando em volta
ansiosamente, apoiado em sua bengala; seu daemon acastanhado saltava pela neve,
olhando para os lados.
– Farder Coram! Estou aqui! – Lyra gritou.
O ancião escutou e voltou-se para olhar, espantado, para o balão que forçava a
corda e as bruxas tentando segurá-lo, e Lyra acenando freneticamente de dentro da
cesta.
– Lyra! Você está bem, garota? Está bem?
– Melhor que nunca! – ela gritou de volta. – Adeus, Farder Coram! Adeus! Leve
as crianças para casa em segurança!
– Vamos fazer isso! Vá direitinho, filha... vá direitinho...vá direitinho, minha
querida...
Neste momento, o aeróstata baixou o braço como sinal, e as bruxas soltaram a
corda.O balão ergueu-se imediatamente, subindo no ar cheio de neve numa velocidade
que Lyra mal podia acreditar. Depois de um instante, o solo desapareceu na neblina, e
eles subiram cada vez mais rápido; ela achava que foguete nenhum teria conseguido
subir tão depressa. Estava deitada, agarrada a Roger, no chão da cesta, empurrada
pela aceleração.
Lee Scoresby gracejava, ria e soltava berros selvagens de alegria; Iorek Byrnison
retirava calmamente sua armadura, enfiando uma garra nas emendas para abri-las e
arrumando as peças numa pilha. O ruído do ar que passava através de folhas de
pinheiro nubígeno denunciava que as bruxas lhes faziam companhia.
Aos poucos, Lyra recuperou o fôlego, o equilíbrio e o ritmo do coração. Ela
sentou- se e olhou em volta.
A cesta era muito maior do que ela imaginara. Ao longo da borda, havia fileiras de
instrumentos filosóficos, e pilhas de mantas de peles, garrafas de ar e uma variedade
de outras coisas pequenas demais ou complicadas demais para se distinguirem no
meio da névoa espessa que eles estavam atravessando na subida.
– Isto é nuvem? – ela quis saber.
– É. Enrole o seu amigo numas mantas antes que ele vire um boneco de gelo.
Está frio, aqui, e vai ficar ainda mais frio.
– Como foi que nos achou?
– As bruxas. Há uma bruxa que quer conversar com você. Quando passarmos das
nuvens, vamos ver nossa direção e então podemos sentar para bater um papo.
– Iorek, obrigada por ter vindo! – disse Lyra ao urso.
O urso grunhiu e acomodou-se para lamber o sangue dos pêlos. Seu peso fazia a
cestinha ficar inclinada para um lado, mas isto não tinha a menor importância. Roger
estava arisco, mas Iorek Byrnison não lhe deu mais atenção do que daria a um floco de
neve. Lyra contentou-se em ficar de pé agarrada à borda da cesta (que lhe batia
embaixo do queixo), observando a nuvem com olhos arregalados.
Poucos segundos depois, o balão deixou a nuvem para baixo e, ainda subindo
rapidamente, ganhou os céus.
Que visão!
Diretamente acima deles, o balão enorme; acima e à frente deles flamejava a
Aurora Boreal, com mais brilho e grandiosidade do que ela jamais tinha visto. A Aurora
estava em toda a volta, ou quase, e eles praticamente faziam parte dela. Grandes
riscos incandescentes estremeciam e repartiam-se como asas de anjos; cascatas de
gloriosa luminosidade desciam de penhascos invisíveis para formar lagos turbilhonantes
ou tombar como enormes cascatas.
De modo que Lyra ficou maravilhada; então olhou para baixo, e o que viu era
ainda mais maravilhoso.
Até onde a vista alcançava, até o próprio horizonte em todas as direções,
estendia-se um ondulado mar de brancura. Picos suaves e abismos vaporosos
erguiam-se ou abriam-se aqui e ali, mas no todo aquilo parecia uma massa de gelo
sólida.E havia também, surgindo dela, sozinhas, aos pares ou em grupos maiores,
pequenas sombras negras, aquelas figuras de tamanha elegância – as bruxas em seus
galhos de pinheiro nubígeno.
Voavam velozes, sem esforço, para cima e na direção do balão, inclinando-se
para os lados para direcionar o vôo. E uma delas, a arqueira que tinha salvo Lyra da
Sra. Coulter, pôs-se a voar perto da cesta, e Lyra viu-a com clareza pela primeira vez.
Era jovem – mais jovem que a Sra. Coulter – e clara, de olhos verdes e brilhantes;
usava, como todas as bruxas, faixas de seda negra, mas sem casaco, capuz ou luvas.
Parecia não sentir frio. Levava na testa uma coroa simples de pequenas flores
vermelhas. Ela cavalgava seu galho de pinheiro nubígeno como se fosse um garanhão e
parecia estar contendo-o a um metro de Lyra.
– Lyra?
– Sim! E você é Serafina Pekkala?
– Sou.
Lyra entendeu porque Farder Coram a amava e por que aquilo estava lhe
despedaçando o coração, embora até um momento antes ela não soubesse essas
coisas. Ele estava ficando velho; era um velho alquebrado, e ela ficaria jovem durante
muitas gerações.
– Está com o leitor de símbolos? – perguntou a bruxa em voz tão parecida com o
canto selvagem da própria Aurora Boreal que Lyra mal conseguia entender o sentido
por causa da doçura do som.
– Estou, sim. Está no meu bolso, bem seguro.
Um forte rufar de asas anunciou a chegada do daemon-ganso cinzento, que logo
estava deslizando ao lado dela. Ele disse alguma coisa e então afastou-se para planar
num círculo largo em volta do balão – que ainda não tinha parado de subir.
– Os gípcios destruíram Bolvangar – contou Serafina Pekkala. – Mataram 22
guardas e nove membros da equipe, e incendiaram tudo que ainda sobrava de pé. Vão
arrasar completamente o lugar.
– E a Sra. Coulter?
– Nenhum sinal dela.
Ela soltou um grito estridente, e outras bruxas voaram na direção do balão.
– Sr. Scoresby, a corda, por favor – ela pediu.
– Madame, fico muito agradecido. Ainda estamos subindo. Acho que ainda vamos
subir por algum tempo. Quantas vão precisar puxar para nos levar para o norte?
– Somos fortes – foi a única resposta dela.
Lee Scoresby estava prendendo uma corda forte ao anel de ferro coberto de
couro que segurava as cordas que prendiam o balão, e de onde a própria cestinha
estava suspensa. Depois de prendê-la com segurança, ele jogou a outra ponta para
fora e imediatamente seis bruxas voaram até ela, agarraram a corda e puseram-se a
puxar, dirigindo seus galhos de pinheiro nubígeno no rumo da Estrela Polar.
Quando o balão começou a mover-se naquela direção, Pantalaimon veio
empoleirar – se na borda da cesta como uma andorinha.
O daemon de Roger assomou para olhar, mas logo voltou para baixo, pois Roger
estava dormindo profundamente, assim como Iorek Byrnison. Só Lee Scoresby estava
acordado, mascando calmamente um charuto fino e observando seus instrumentos.
– Então, Lyra, sabe por que está indo em busca de Lorde Asriel? – perguntou
Serafina Pekkala.
Lyra ficou atônita.
–Para levar o aletômetro para ele, é claro! – respondeu.
Nunca tinha pensado naquilo, era óbvio. Então recordou seu primeiro motivo, tão
antigo que ela quase se esquecera dele.
–Ou... Para ajudá-lo a fugir. É isso. Vamos ajudá-lo a sair de lá.
Mas enquanto falava, achava isto absurdo. Fugir de Svalbard! Impossível!
–Pelo menos tentar- disse, corajosamente. – Por quê?
–Acho que preciso lhe contar umas coisas – disse Serafina Pekkala.
–Sobre o Pó? – foi a primeira coisa que Lyra quis saber.
–Sim, entre outras coisas. Mas agora você está cansada e vai ser uma viagem
longa. Conversamos quando você acordar.
Lyra bocejou. Foi um bocejo de cair o queixo e explodir os pulmões, durando
quase um minuto, ou pelo menos parecia, e por mais que Lyra tentasse, não conseguiu
resistir ao ataque do sono. Serafina Pekkala estendeu a mão por cima da borda da
cesta e tocou nos olhos dela; Lyra caiu no chão enquanto Pantalaimon voava para
baixo, onde se transformou em arminho e acomodou-se em seu lugar de dormir: junto
ao pescoço dela.
A bruxa cavalgava seu galho numa velocidade regular ao lado da cestinha, e
assim viajaram para o norte, em direção a Svalbard.

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