sábado, 18 de outubro de 2014

18- Gelo e Neblina

Lee Scoresby arrumou algumas mantas sobre Lyra. Ela enrodilhou-se junto a
Roger, e os dois dormiram enquanto o balão viajava rumo ao Pólo.
De vez em quando, o aeróstata conferia seus instrumentos, mascava o
charuto que ele não podia acender com o hidrogênio tão perto e encolhia-se mais
dentro de suas peles.
– Esta garotinha é bem importante, não é? – perguntou, depois de vários
minutos.
– Mais do que ela saberá – respondeu Serafina Pekkala.
– Quer dizer que vamos ter muita perseguição armada? Entenda, estou
falando como um homem prático, que tem que ganhar a vida. Não posso me dar
ao luxo de ser preso ou morto sem alguma espécie de compensação combinada de
antemão. Não estou tentando denegrir esta expedição, pode acreditar, madame. Mas
John Faa e os gípcios me pagaram uma quantia suficiente para cobrir meu tempo,
minhas habilidades e o desgaste do balão, e é só. Não incluía seguro contra atos de
guerra. E pode ficar sabendo, madame, que quando desembarcarmos Iorek Byrnison
em Svalbard, isso vai ser um ato de guerra.
Ele cuspiu com delicadeza um pedacinho do charuto para fora da cestinha.
–De modo que eu gostaria de saber o que esperar em matéria de tumultos e
confusões – concluiu.
–Pode haver luta- admitiu Serafina Pekkala. – Mas o senhor já lutou antes.
–Claro, quando me pagam. Mas o caso é que pensei que isso era um contrato
normal de transporte, e foi assim que cobrei.
Agora, depois daquele entrevero lá embaixo, estou pensando até onde vai a
minha obrigação de fornecer transporte. Se sou obrigado a arriscar minha vida e o meu
equipamento numa guerra entre os ursos, por exemplo. Ou se essa garotinha tem em
Svalbard inimigos tão mal-humorados quanto os lá de Bolvangar. Menciono isso apenas
como um assunto trivial numa conversa.
A bruxa respondeu:
– Sr. Scoresby, gostaria de poder responder sua pergunta. Só posso dizer é que
todos nós, humanos, bruxas e ursos, já estamos numa guerra, embora nem todos
saibamos disso. Encontrando perigo em Svalbard ou saindo de lá sem um arranhão, o
senhor está recrutado, é um soldado.
– Bom, acho isso meio precipitado. Acho que a pessoa devia ter direito de
escolher se quer brigar ou não.
– Nisso não temos mais escolha do que em nascer ou não nascer .
– Ah, mas gosto de escolher – ele insistiu. – Gosto de escolher os trabalhos que
faço, os lugares a que vou, a comida que como e as pessoas com quem me sento para
conversar. Não gostaria de poder escolher de vez em quando?
Serafina Pekkala pensou um pouco, depois disse:
– Talvez a palavra "escolher" tenha significados diferentes para nós dois, Sr.
Scoresby. As bruxas nada possuem, de modo que não estamos interessadas em
preservar valores ou ter lucro, e quanto a escolher entre uma coisa e outra, quando se
vive por muitas centenas de anos, aprende-se que toda oportunidade voltará. Nós
temos necessidades diferentes. O senhor precisa consertar seu balão e mantê-lo em
boas condições, e isso toma tempo e trabalho, eu entendo; mas se nós queremos voar,
tudo que precisamos fazer é cortar um galho de pinheiro nubígeno; qualquer um serve,
e ainda restam muitos. Não sentimos frio, de modo que não precisamos de roupas
quentes. Não temos moeda de troca a não ser a ajuda mútua; se uma bruxa precisa de
alguma coisa, outra bruxa lhe dará. Se há uma guerra, não pensamos no custo como
um dos fatores para decidir se é correto lutar nela, nem temos qualquer conceito de
honra, como os ursos, por exemplo. Para um urso um insulto é uma coisa mortal; para
nós é só... inconcebível. Como é que se pode insultar uma bruxa? E que importância
teria se alguém fizesse isso?
– Bom, até aí eu vou. Se alguém me ataca fisicamente, eu revido, mas se alguém
me xinga, não ligo a mínima. Mas, madame, está entendendo o meu dilema, eu espero.
Sou um simples aeróstata e gostaria de terminar minha vida com conforto. Comprar
uma fazendinha, algumas cabeças de gado, uns cavalos... Nada de grandioso, a
senhora está percebendo. Nada de palácio, escravos ou montes de ouro. Só o vento
da noite nas árvores e um charuto, e um copo de bourbon. O problema é que isso
custa dinheiro. De modo que faço meus vôos em troca de dinheiro, e, depois de cada
trabalho, eu mando algum ouro para o Banco Wells Fargo, e, quando tiver o suficiente,
madame, vou vender este balão e comprar uma passagem num vapor para Port
Galveston, e nunca mais saio do chão.
– Há outra diferença entre nós, Sr. Scoresby. Uma bruxa prefere desistir de
respirar do que desistir de voar. Voar é sermos inteiramente nós mesmas.
– Estou entendendo, madame, e tenho inveja da senhora; mas não tenho as suas
fontes de satisfação. Para mim voar é só um trabalho, e eu sou só um técnico. Podia
muito bem estar regulando válvulas num motor a gás ou montando circuitos anbáricos.
Mas escolhi isso, entende? Foi uma escolha minha. E é por isso que acho meio chata
essa idéia de uma guerra que ninguém tinha me informado.
– A briga de Iorek Byrnison com o rei também faz parte de tudo isso – disse a
bruxa. – Esta menina está destinada a ter um papel nisso.
– A senhora fala de destino como se fosse uma coisa fixa, e eu não sei se gosto
disso mais do que gosto de uma guerra em que me alistaram sem eu saber. Onde é
que está meu livre-arbítrio, quer me dizer? – ele argumentou. – E esta criança parece
que tem mais livre-arbítrio do que qualquer pessoa que já conheci. Está querendo me
dizer que ela é uma espécie de brinquedo de corda fazendo um papel que ela própria
não pode mudar?
–Todos nós somos sujeitos aos fatos, mas todos temos que fingir que não somos,
para não morrermos de desespero – disse a bruxa. – Existe uma profecia curiosa
sobre esta menina: ela está destinada a provocar o fim do destino. Mas tem que fazer
isso sem saber o que está fazendo, como se fosse por sua própria natureza e não por
força do seu destino. Se souber o que tem que fazer, tudo fracassará; a morte vai
varrer todos os mundos e será o triunfo do desespero, para sempre. Os universos vão
se tornar apenas máquinas interligadas, cegas e vazias de pensamentos, de
sentimentos, de vida...
Os dois olharam para Lyra, cujo rosto adormecido (o pouco que conseguiam
enxergar dentro do capuz) mostrava uma expressão obstinada.
– Acho que parte dela sabe disso – comentou o aeróstata.
– De qualquer maneira, ela parece preparada. E o garoto? Sabe que ela veio até
aqui para salvar o garoto daqueles bandidos? Eram amiguinhos em Oxford ou coisa
assim. Sabia disso?
– Sabia. Lyra está carregando uma coisa de imenso valor, e parece que os fados
estão usando a menina como mensageira para ela levar esse objeto ao pai. De modo
que ela veio até aqui para encontrar o amigo, sem saber que o amigo foi trazido para o
Norte pelos fados para que ela pudesse vir atrás e trazer uma coisa para seu pai.
– É assim que a senhora vê as coisas, é?
Pela primeira vez, a bruxa parecia insegura.
– É o que parece... mas não podemos ler a escuridão, Sr.Scoresby. É mais que
possível que eu esteja errada.
– E que foi que botou a senhora nisso, se é que posso perguntar?
– O que quer que eles estivessem fazendo em Bolvangar, nossos corações nos
diziam que era errado. Lyra é inimiga deles, então somos amigos dela. Não
conseguimos enxergar mais que isso. E também a amizade do meu clã pelo povo
gípcio, desde quando Farder Coram salvou minha vida. Estamos fazendo isso a pedido
deles. E eles têm laços de obrigação para com Lorde Asriel.
– Entendo. Então vão rebocar o balão até Svalbard por amizade aos gípcios;
essa amizade vai fazer vocês nos levarem de volta? Ou vou ter que esperar um vento
bom e enquanto isso depender da indulgência dos ursos? Mais uma vez, madame,
quero dizer que estou perguntando só para passar o tempo.
– Se pudermos ajudar o senhor a voltar para Trollesund, Sr. Scoresby, faremos
isso. Mas não sabemos o que vamos encontrar em Svalbard. O novo rei dos ursos fez
muitas mudanças; os velhos hábitos caíram em desgraça; pode ser uma aterrissagem
difícil. E não sei como Lyra vai conseguir chegar ao pai. Nem sei o que Iorek Byrnison
pretende fazer, a não ser que o destino dele está ligado ao dela.
– Também não sei, madame. Acho que ele se ligou à garotinha como uma
espécie de protetor. Ela ajudou a pegar de volta a armadura dele, entende? Quem é
que sabe o que os ursos sentem? Mas se um urso algum dia amou um ser humano, ele
ama essa menina. Quanto a pousar em Svalbard, isso nunca foi fácil. Mas se eu puder
contar com vocês para um puxãozinho na direção certa, vou me sentir mais tranqüilo; e
se puder retribuir de algum modo, é só dizer. Mas, só por curiosidade, pode me dizer
de que lado eu estou nesta guerra invisível?
– Nós dois estamos do lado de Lyra.
– Ah, quanto a isso não há dúvida.
A viagem prosseguia. As nuvens impediam que se soubesse a velocidade em que
iam. Normalmente o balão ficava imóvel em relação ao vento, movendo-se na
velocidade com que o ar se movia; mas agora, puxado pelas bruxas, o balão movia-se
através do ar, e não com ele, e resistia ao movimento, pois sua forma redonda não
tinha a aerodinâmica de um zepelim. Como resultado, a cestinha balançava de um lado
para outro, muito mais do que num vôo normal.
Lee Scoresby não estava preocupado com seu conforto, e sim com seus
instrumentos, e passou algum tempo certificando-se de que eles estavam bem presos.
Segundo o altímetro, estavam a quase dez mil pés de altura. A temperatura era de 20
graus negativos. Ele já pegara mais frio que isso, mas não muito, e não queria sentir
mais frio agora; de modo que desenrolou a lona que usava como barraca de
emergência e estendeu-a diante das crianças adormecidas para desviar o vento, antes
de se deitar com as costas apoiadas nas costas de seu velho companheiro de batalha,
Iorek Byrnison, e adormecer.
Quando Lyra acordou, a lua estava alta no céu, e tudo em volta coberto de prata,
desde a superfície das nuvens lá embaixo até os pingentes de gelo nas cordas do
balão.
Roger dormia, assim como Lee Scoresby e o urso. Ao lado da cesta, porém, a
bruxa- rainha voava serenamente.
– Quanto tempo falta para Svalbard? – Lyra perguntou.
– Se não encontrarmos vento, estaremos acima de Svalbard daqui a umas 12
horas.–
Onde é que vamos pousar?
– Depende das condições do tempo. Vamos tentar evitar os rochedos. Lá vivem
criaturas que atacam qualquer coisa que se move. Se pudermos, vamos deixar vocês
no interior, longe do palácio de Iofur Raknison.
– Que é que vai acontecer quando eu encontrar Lorde Asriel? Ele vai querer voltar
para Oxford? Também não sei se devo contar a ele que eu sei que ele é o meu pai. Ele
pode querer fingir que ainda é meu tio. Nem conheço ele direito.
– Ele não vai querer voltar para Oxford, Lyra. Parece que há uma coisa a ser feita
em outro mundo, e Lorde Asriel é o único que consegue atravessar o abismo entre
esse mundo e o nosso. Mas ele precisa da ajuda de uma coisa.
– O aletômetro! – Lyra exclamou. – Quando o Reitor da Jordan me deu o
aletômetro, achei que ele queria dizer alguma coisa sobre Lorde Asriel, mas não teve
chance. Eu sabia que ele não queria envenenar Lorde Asriel de verdade. Ele vai ler o
aletômetro para ver como fazer a ponte? Aposto que eu podia ajudar. Com certeza,
agora consigo ler os símbolos tão bem quanto qualquer pessoa.
– Não sei – disse Serafina Pekkala. – Não sabemos como ele vai fazer isso, e
qual será a tarefa dele. Há poderes que falam conosco e poderes acima deles; e há
segredos até para os mais elevados.
– O aletômetro me diria! Eu podia ler agora...
Mas estava frio demais; ela não conseguiria segurá-lo. Enrolou-se nas peles e
puxou bem o capuz contra o vento frio, deixando apenas uma fenda para enxergar.
Bem à frente e um pouco abaixo deles, a corda comprida presa ao anel do balão era
puxada por seis ou sete bruxas sentadas em seus galhos de pinheiro nubígeno. As
estrelas tinham o brilho frio dos diamantes.
– Não está com frio, Serafina Pekkala?
– Nós sentimos frio, mas não ligamos para ele, porque não podemos ficar
doentes. E se nos agasalharmos contra o frio não sentiremos outras coisas, como a
sensação do brilho das estrelas, ou a música da Aurora Boreal, ou, melhor que tudo, a
sensação sedosa do luar em nossa pele. Vale a pena sentir frio.
– Eu conseguiria ter essas sensações?
– Não. Você morreria se tirasse os agasalhos. Fique bem agasalhada.
– Quanto tempo vivem as bruxas, Serafina Pekkala? Farder Coram diz que são
centenas de anos. Mas você não parece velha.
– Tenho mais de 300 anos. Nossa bruxa-mãe mais idosa tem quase mil anos. Um
dia Yambe-Akka virá buscá-la. Um dia ela virá me buscar também. É a deusa dos
mortos. Ela vem sorrindo, com muita bondade, e a gente fica sabendo que está na hora
de morrer.
– Existem bruxos também, ou só bruxas?
– Existem homens que nos servem, como o Cônsul em Trollesund. E existem
homens que tomamos como amantes ou maridos. Você é muito novinha, Lyra, jovem
demais para entender, mas vou lhe dizer de qualquer maneira e mais tarde você vai
compreender: os homens passam diante de nossos olhos como borboletas, criaturas
que só duram uma estação. Nós os amamos; eles são corajosos, orgulhosos, belos,
inteligentes; e morrem quase de repente. Eles morrem tão depressa que nosso
coração fica constantemente cheio de dor. Damos à luz os filhos deles, que serão
bruxas se forem mulheres, e humanos, se forem homens; e então, num piscar de olhos,
eles já partiram, caíram, morreram, perderam-se. Nossos filhos também. Quando um
menino está crescendo, ele acha que é imortal. A mãe dele sabe que ele não é. Cada
vez fica mais doloroso, até que finalmente a gente fica com o coração partido. Talvez
seja então que Yambe-Akka vem nos buscar. Ela é mais antiga que a tundra. Talvez
para ela a vida de uma bruxa seja tão curta quanto a dos homens é para nós.
– A senhora amava Farder Coram?
– Sim. Ele sabe disso?
– Não sei, mas sei que ele ama a senhora.
– Quando ele me salvou, era jovem, forte, cheio de orgulho e beleza. Eu me
apaixonei imediatamente. Eu teria mudado minha natureza, teria renunciado à sensação
das estrelas e à música da Aurora; nunca mais teria voado. Eu teria renunciado a tudo
num instante, sem hesitar, para ser uma esposa gípcia e morar num barco, cozinhar
para ele, compartilhar seu leito e ter seus filhos. Mas não se pode mudar o que a gente
é, só o que a gente faz. Eu sou uma bruxa; ele é humano. Fiquei com ele o tempo
suficiente para ter um filho dele...
– Ele nunca me disse isso! É uma menina? Uma bruxa?
– Não. Um menino, e ele morreu na grande epidemia de 40 anos atrás, a doença
que veio do Oriente. Pobre criança, ele entrou e saiu desta vida como uma faísca. E
isso dilacerou meu coração, como sempre acontece. E o de Coram também. E então
veio o chamado para que eu voltasse para o meu próprio povo, porque Yambe-Akka
tinha levado minha mãe, portanto, eu era a rainha do clã. Então parti, como era meu
dever.–
Nunca mais viu Farder Coram?
– Nunca mais. Ouvi falar das façanhas dele; soube que foi ferido pelos
escraelingues com uma flecha envenenada e mandei ervas e encantos para ajudar a
cura, mas não estava suficientemente forte para ir visitá-lo. Soube que depois disso ele
ficou muito alquebrado, e sua sabedoria cresceu, ele leu e estudou muito. Fiquei muito
orgulhosa dele, mas me mantive afastada, pois era uma época de perigos para o meu
clã, com ameaças de guerra entre as bruxas, e além disso achei que ele iria me
esquecer e arranjar uma esposa humana...
– Ele nunca faria isso – Lyra retrucou. – A senhora devia ir até ele. Ele ainda ama
a senhora, eu sei disso.
– Mas ele ficaria envergonhado pela sua idade, e eu não quero que ele se sinta
assim.–
Talvez seja verdade. Mas devia pelo menos mandar um recado. É o que eu
acho.
Serafina Pekkala ficou longo tempo sem dizer coisa alguma.
Pantalaimon transformou-se numa andorinha e voou até o galho dela por um
segundo, reconhecendo que talvez eles tivessem sido insolentes. Lyra perguntou então:
– Por que as pessoas têm daemons, Serafina Pekkala?
– Todo mundo pergunta isso, e ninguém sabe a resposta. Desde que os seres
humanos existem, os daemons existem também. É o que nos torna diferentes dos
animais.
– É! Somos mesmo diferentes deles... Como os ursos. Eles são estranhos, não
são? Parecem uma pessoa, e de repente fazem uma coisa tão estranha ou tão
selvagem que a gente acha que nunca vai conseguir entender um urso... Mas sabe o
que Iorek me disse? Ele disse que a armadura dele era para ele o que um daemon é
para uma pessoa. Ele disse que é a alma dele. Mas nisso também somos diferentes,
porque ele mesmo fez a sua armadura. Tiraram a primeira armadura dele quando ele
foi para o exílio, ele encontrou um pouco de ferro-celeste e fez uma nova. É como fazer
uma alma nova. Nós não podemos fazer nossos daemons. Então as pessoas em
Trollesund fizeram ele ficar bêbado e roubaram a armadura, eu descobri onde estava, e
ele pegou de volta... Mas eu queria saber por que ele está voltando para Svalbard. Vão
atacar ele. Podem até matar... Eu adoro o Iorek. Gosto tanto dele que queria que ele
não tivesse vindo.
– Ele lhe contou quem é?
– Só me contou o nome. E isso foi o Cônsul em Trollesund quem nos contou.
– Ele é nobre. É um príncipe. Aliás, ele seria agora o rei dos ursos se não tivesse
cometido um grande crime.
– Ele me disse que o rei se chama Iofur Raknison.
– Iofur Raknison tornou-se rei quando Iorek Byrnison foi exilado. É claro que Iofur
também é um príncipe, senão não poderia governar. Mas ele tem a esperteza dos
humanos; faz alianças e tratados. Ele não vive como os ursos em fortalezas de gelo,
mas num palácio recém-construído; fala em trocar embaixadores com nações humanas
e explorar as minas de fogo com ajuda de engenheiros humanos... Ele é muito
habilidoso e sutil. Dizem alguns que ele levou Iorek ao ato que o condenou ao exílio, e
outros dizem que, mesmo que isso não seja verdade, ele encoraja que pensem que é,
pois isso aumenta sua reputação de esperteza e sutileza.
– Afinal, que foi que Iorek fez? Sabe, uma das razões de amar Iorek é o meu pai,
tendo feito o que fez, ser castigado. Acho que os dois são parecidos. Iorek me contou
que matou outro urso, mas nunca disse como foi.
– A luta foi por uma ursa. O macho que Iorek matou não queria mostrar os sinais
de rendição, mesmo estando claro que Iorek era o mais forte. Apesar de todo o seu
orgulho, os ursos nunca deixam de reconhecer a superioridade de outro urso e renderse
a ela, mas, por um motivo qualquer, esse urso não fez isso. Tem gente que diz que
Iofur Raknison influenciou a mente dele, ou então lhe deu ervas embriagantes para
comer. De qualquer maneira, o urso jovem insistiu, e Iorek Byrnison permitiu que seu
temperamento o dominasse. O caso não foi difícil de julgar, pois ele podia ferir, mas
não matar.
– Quer dizer que se não fosse isso ele seria o rei... –disse Lyra. – Eu ouvi o
professor de palmeriano na Jordan falar alguma coisa sobre Iofur Raknison, porque ele
tinha estado no Norte e conhecido ele. Ele falou... Eu queria tanto me lembrar... Acho
que ele tomou o poder através de um truque, ou coisa assim... Mas, sabe, Iorek me
disse uma vez que não se consegue enganar um urso e me mostrou que eu não
conseguia enganar ele. Parece que os dois foram enganados, ele e o outro urso.
Talvez só os ursos consigam enganar outro urso, talvez as pessoas não consigam. A
não ser... Aquela gente em Trollesund, aquelas pessoas enganaram ele, não foi?
Quando deixaram ele bêbado e roubaram a armadura?
– Quando os ursos agem como gente, talvez possam ser enganados – disse
Serafina Pekkala. – Quando os ursos agem como ursos, talvez não possam.
Normalmente um urso não beberia álcool; Iorek Byrnison bebeu para esquecer a
vergonha do exílio, e foi só isso que permitiu que as pessoas em Trollesund o
enganassem.
– É, sim – Lyra concordou. Achava que era isso mesmo. Admirava Iorek quase
ilimitadamente e ficou feliz com a confirmação da nobreza dele. – A senhora foi muito
inteligente. Eu jamais saberia disso se a senhora não tivesse me contado. Acho que
deve ser mais inteligente do que a Sra. Coulter.
A viagem continuava. Lyra mascou um pouco de carne de foca que encontrou no
bolso. Depois de algum tempo, perguntou:
– Serafina Pekkala, o que é o Pó? Porque acho que toda essa confusão é por
causa do Pó, só que ninguém me diz o que é isso.
– Eu não sei – afirmou Serafina Pekkala. – As bruxas nunca se preocuparam com
o Pó. Só posso lhe dizer que onde há padres, há medo do Pó. A Sra. Coulter não é um
padre, naturalmente, mas é uma poderosa agente do Magisterium e foi ela quem criou
o Conselho de Oblação e convenceu a Igreja a financiar Bolvangar, por causa do
interesse dela no Pó. Não conseguimos entender os sentimentos dela. Mas há muitas
coisas que nunca conseguimos entender. Vemos os tártaros fazendo buracos no crânio
e ficamos curiosas, achamos estranho. Então esse Pó deve ser uma coisa estranha.
Ficamos curiosas, mas não nos preocupamos nem cortamos coisas para descobrir o
que é. Deixamos isso para a Igreja.
– A Igreja? – fez Lyra.
Uma coisa tinha lhe voltado: a lembrança de conversar com Pantalaimon, nos
Pântanos, sobre o que podia estar movendo o ponteiro do aletômetro, e eles tinham
pensado na ventoinha movida a luz no altar principal da Faculdade Gabriel, e como as
partículas elementares empurravam as pequenas hélices. O Intercessor tinha sido bem
claro sobre a ligação entre as partículas elementares e a religião.
– Pode ser... Afinal, a maioria das coisas da Igreja é segredo – disse. – Mas a
maioria das coisas da Igreja é velha, e o Pó não é velho, pelo que sei. Será que Lorde
Asriel vai poder me contar...? Tornou a bocejar. – Acho melhor me deitar, senão vou
congelar – disse a Serafina Pekkala. – Senti bastante frio lá no chão, mas nunca tanto
frio assim. Acho que com um pouco mais eu morreria.
– Então deite-se e se enrole nas mantas.
– É, vou fazer isso. Se eu tivesse que morrer, ia preferir morrer aqui em cima do
que lá embaixo. Quando nos botaram debaixo daquela coisa de cortar, achei que
estava na hora... Nós dois achamos... Ah, aquilo foi muito cruel. Mas agora vamos
dormir. Nos chame quando chegarmos - pediu. E deitou-se na pilha de mantas,
desajeitada e dolorida em todas as partes do corpo com a intensidade profunda do frio,
o mais perto que pôde do adormecido Roger.
E assim os quatro viajantes seguiram caminho, dormindo no balão encrustrado de
gelo, rumo às rochas e geleiras, as minas de fogo e as fortalezas de gelo de Svalbard.
Serafina Pekkala chamou o aeróstata, que acordou de imediato, dormente de frio,
mas cônscio, pelo movimento da cesta, de que alguma coisa estava errada: ela
balançava intensamente, sacudida pelos ventos fortes que açoitavam o balão de gás, e
as bruxas que puxavam a corda mal conseguiam contê-lo. Se soltassem a corda, o
balão seria arrastado, e a julgar pela bússola ele seria levado na direção de Nova
Zembla, a quase 150 quilômetros por hora.
– Onde é que nós estamos? – ele gritou.
Lyra ouviu a pergunta. Estava semidesperta, temerosa por causa do movimento,
e com tanto frio que seu corpo inteiro estava dormente.
Não conseguiu escutar a resposta da bruxa, mas pela fenda no capuz ela viu, à
luz de uma lanterna anbárica, Lee Scoresby agarrar-se a um cabo e puxar uma corda
que subia e entrava dentro do próprio balão. Ele deu um puxão forte e levantou o olhar
para a escuridão, antes de enrolar a corda numa ranhura do anel de suspensão.
– Estou tirando um pouco do gás – ele gritou para Serafina Pekkala. – Vamos
descer. Estamos alto demais!
A bruxa gritou alguma coisa em resposta, mas Lyra novamente não escutou.
Roger também estava despertando; os estalos da cesta eram suficientes para acordar
qualquer um – isto sem falar nos solavancos. O daemon de Roger e Pantalaimon
estavam agarrados um ao outro em forma de sagüi, e Lyra concentrou-se em ficar
deitada, imóvel, controlando o medo.
– Tudo bem – disse Roger, parecendo muito mais animado que ela. – Assim que
a gente descer vamos fazer uma fogueira para nos aquecer. Tenho uns fósforos no
bolso. Roubei da cozinha em Bolvangar.
O balão estava mesmo descendo, pois um segundo depois eles foram envolvidos
por uma nuvem espessa e congelante; de repente tudo ficou escuro. Era como a névoa
mais forte que Lyra já havia visto. Depois de um instante, ouviu-se outro grito de
Serafina Pekkala, e o aeróstata desenrolou a corda e soltou-a. A corda subiu
rapidamente, e mesmo com todo o barulho da cesta e do vento Lyra ouviu, ou sentiu,
um forte som vindo de algum lugar acima dela.
Lee Scoresby viu-a arregalar os olhos.
– É a válvula do gás – ele gritou. – Funciona com uma mola e prende o gás lá
dentro. Quando eu puxo para baixo, o gás escapa por cima, e a gente desce.
– Já estamos...
Ela não terminou, pois uma coisa horrível aconteceu: uma criatura com metade do
tamanho de um homem e com asas de couro e garras recurvas estava rastejando pela
lateral da cestinha na direção de Lee Scoresby. A coisa tinha a cabeça chata, olhos
esbugalhados e uma enorme boca de sapo, de onde saíam lufadas de um fedor
insuportável. Lyra não teve tempo sequer de gritar antes que Iorek Byrnison levantasse
a pata e jogasse longe a coisa, que caiu para fora da cesta e desapareceu com um
guincho.
– Avantesma-dos-penhascos – fez Iorek Byrnison laconicamente.
No momento seguinte, Serafina Pekkala apareceu e, agarrada à lateral da cesta,
falou em tom urgente:
– Os avantesmas-dos-penhascos estão nos atacando. Vamos pousar o balão, e
então vamos ter que nos defender. Eles estão...
Mas Lyra não ouviu o resto do que foi dito, porque houve um som de coisa
rasgada.e tudo virou de lado. Então um golpe terrível arremessou os três humanos
contra a lateral do balão onde a armadura de Iorek Byrnison estava empilhada. Iorek
estendeu a pata para segurá-los, por causa dos solavancos da cesta. Serafina Pekkala
desaparecera. O barulho era assustador: acima de qualquer outro som, vinham os
guinchos dos avantesmas-dos-penhascos, e Lyra via-os passar e sentia seu cheiro
terrível.
Então ocorreu outro solavanco, tão repentino que jogou todos no chão outra vez,
e a cesta começou a cair com uma velocidade apavorante, girando todo o tempo.
Parecia que tinham se soltado do balão e estavam em queda livre; então aconteceu
outra série de solavancos e batidas, a cesta sendo jogada rapidamente de um lado
para outro como se estivesse rebatendo entre paredes de pedra.
A última coisa que Lyra viu foi Lee Scoresby atirando com sua pistola de cano
longo diretamente na cara de um avantesma-dos-penhascos; ela então fechou os olhos
com força e agarrou-se ao pêlo de Iorek Byrnison com grande medo. Uivos, guinchos,
o açoite e o assobio do vento, os estalos da cesta parecendo um animal torturado, tudo
isso enchia o ar com um terrível barulho.
Então aconteceu o maior solavanco de todos, que a jogou para fora da cesta.
Todo o ar de seus pulmões foi expulso quando ela aterrissou tão embalada que não
sabia onde era em cima e onde era embaixo; e seu rosto, dentro do capuz bem
puxado, estava cheio de pó: cristais secos e frios...
Era neve; ela havia caído numa faixa de neve solta. Estava tão atordoada que mal
conseguia pensar. Ficou imóvel por alguns segundos antes de cuspir a neve da boca
num gesto sem energia, e então, com a mesma falta de energia, soprou até formar um
pequeno espaço para respirar.
Nada parecia estar doendo excepcionalmente; ela se sentia apenas sem fôlego.
Cautelosamente tentou mexer mãos, pés, braços, pernas, e erguer a cabeça.
Conseguia enxergar muito pouco, pois seu capuz ainda estava cheio de neve.
Com esforço, como se suas mãos pesassem uma tonelada cada uma, ela limpou a
neve e olhou para fora. Viu um mundo cinzento – cinzentos claros, cinzentos escuros e
pretos – , onde lufadas de névoa vagavam como fantasmas.
Os únicos sons eram os guinchos distantes dos avantesmas-dos-penhascos bem
acima, e o fragor de ondas batendo em rochedos a certa distância.
– Iorek! – ela gritou com voz fraca e trêmula, e tentou novamente, mas ninguém
respondeu. – Roger! – chamou, com o mesmo resultado.
Parecia que estava sozinha no mundo, mas isto naturalmente ela nunca estava, e
Pantalaimon esgueirou-se para fora do agasalho dela como um rato para lhe fazer
companhia.
– Verifiquei o aletômetro, e ele está inteiro – ela disse.
– Estamos perdidos, Pan! – ela exclamou. – Viu aqueles avantesmas-dospenhascos?
E o Sr. Scoresby atirando neles? Deus nos ajude se eles descerem aqui...
– É melhor tentarmos encontrar a cesta, talvez – disse ele.
– É melhor não gritarmos – ela acrescentou. – Fiz isto há pouco, mas é melhor
não, para eles não ouvirem. Queria saber onde estamos.
– Podemos não gostar de saber – ele observou. - Podemos estar no fundo de
um abismo sem caminho para cima, e com os avantesmas-dos-penhascos lá no alto
para nos caçarem quando a névoa dissipar.
Ela tateou em volta, depois de descansar por vários minutos mais, e descobriu
que aterrissara numa fenda entre dois rochedos cobertos de gelo. A névoa congelante
encobria tudo; de um lado havia o fragor das ondas a uns 50 metros, julgando pelo
som, e de cima ainda vinham os guinchos dos avantesmas-dos-penhascos, embora
parecessem estar diminuindo um pouco. Ela não enxergava mais do que dois ou três
metros, e até mesmo os olhos de coruja de Pantalaimon eram inúteis.
Trabalhosamente, escorregando e deslizando pelas pedras ásperas, ela afastouse
das ondas e subiu um pouco a praia, encontrando apenas rochas e neve, e nenhum
sinal do balão ou de algum de seus ocupantes.
– Não podem ter desaparecido todos- ela sussurrou.
Pantalaimon, em forma de gato, andava um pouco à frente dela, e encontrou
quatro sacos de areia rebentados, o conteúdo espalhado e já congelando.
– Lastro – Lyra informou. – Ele deve ter jogado fora para poder subir
novamente...
Ela engoliu em seco para limpar o nó na garganta, ou o medo em seu peito, ou
ambos.
– Ah, meu Deus, estou apavorada – confessou. –Espero que todos estejam bem.
Ele então veio para os braços dela e em forma de rato esgueirou-se para dentro
do seu capuz, onde ficaria escondido.
Ela ouviu um ruído, alguma coisa arranhando a pedra, e virou-se para ver o que era.
– Ior...!
Mas não chegou a dizer a palavra inteira, pois não se tratava de Iorek Byrnison.
Era um urso desconhecido, usando uma armadura polida e coberta de orvalho
congelado, com uma pluma no elmo.
Ele ficou imóvel a uns dois metros de distância, e ela pensou que estava
realmente perdida.
O urso abriu a boca e rugiu. Dos rochedos veio um eco que fez aumentar o ruído
dos guinchos no céu. Outro urso surgiu da névoa, e mais outro. Lyra ficou imóvel,
apertando seus pequenos punhos humanos.
Os ursos não se moveram até o primeiro deles falar:
– Seu nome?
– Lyra.
– De onde você vem?
– Do céu.
– Num balão?
– Sim.
– Venha conosco. Você é nossa prisioneira. Agora mexa-se. Depressa. Exausta e
apavorada, Lyra pôs-se a caminhar, aos tropeções, pelas pedras ásperas e
escorregadias, seguindo o urso e se perguntando se a sua esperteza conseguiria livrála
daquela situação.

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