sábado, 18 de outubro de 2014

2- A Imagem Do Norte

– LORDE Asriel! – o Reitor exclamou em tom alto, e avançou para apertar-lhe a mão.
De seu esconderijo, Lyra observava os olhos do Reitor, e de fato, por um
segundo, eles foram até a mesa onde o Tokay estivera. Lorde Asriel falou:
–Reitor, cheguei Lorde demais, não quis atrapalhar seu jantar, de modo que
me acomodei aqui. Olá, Vice-reitor. É bom vê-lo com tão boa aparência. Perdoe-me
os trajes, acabei de chegar. Sim, Reitor, o Tokay se foi. Acho que o senhor
está parado em cima dele. O Porteiro derrubou-o da mesa, mas a culpa foi minha.
Olá, Capelão. Li seu último artigo com grande interesse...
Ele afastou-se com o Capelão, deixando a Lyra uma visão perfeita do rosto
do Reitor. Este estava impassível, mas o daemon em seu ombro arrepiava as penas e
movia- se inquietamente de um pé para o outro. Lorde Asriel já estava dominando o
ambiente, e, embora tivesse o cuidado de ser cortês com o Reitor no território do
próprio Reitor, era óbvio onde estava o poder.
    Os Catedráticos saudaram o visitante e espalharam-se pela sala, alguns indo
sentar- se em volta da mesa, outros procurando as poltronas, e logo o zumbido das
conversas enchia o ar. Lyra percebia que eles estavam muito intrigados com a caixa de
madeira, a tela e a lanterna de projeção. Conhecia muito bem os Catedráticos: o Bibliotecário, o Vice-reitor, o Inquiridor e o resto.
Durante toda a vida, ela convivera com esses homens; eles a ensinavam, a
castigavam, a consolavam, davam-lhe presentinhos, proibiam-na de chegar perto das
frutas no Pomar; eram toda a sua família. Ela podia até amá-los como se fossem
mesmo a sua família se soubesse o que era uma família, embora nesse caso fosse
mais provável que ela sentisse isso pelos criados da Faculdade; os Catedráticos tinham
coisas mais importantes a fazer do que dar afeto a uma garota meio selvagem, meio
civilizada, que o acaso colocara entre eles.
O Reitor acendeu o pavio sob o pratinho de prata e aqueceu um pouco de
manteiga antes de abrir com uma faca meia dúzia de botões de papoula e jogá-los no
prato. Depois de um jantar, sempre se servia papoula; ela clareava a mente e
estimulava a língua, favorecendo a riqueza da conversa. A tradição era o próprio Reitor
torrá-las.
Sob o chiar da manteiga no calor e o zumbido das conversas, Lyra mexeu-se,
procurando uma posição mais confortável. Com enorme cuidado, ela tirou do cabide
uma das becas – uma túnica de pele que ia até o chão – e estendeu-a no chão do
armário.
– Você devia usar uma velha e áspera – sussurrou Pantalaimon. – Se ficar
confortável demais, vai pegar no sono.
– Se isso acontecer, você tem obrigação de me acordar – ela respondeu. Sentou-se
e ficou a ouvir a conversa. Uma conversa bastante chata, por sinal; quase toda
sobre política, e ainda por cima política de Londres, nenhum assunto excitante como os
tártaros.
O cheiro agradável de papoula fritando na manteiga e de folha de tabaco
penetrava pela fresta da porta do armário, e mais de uma vez Lyra percebeu que
estava quase cochilando. Finalmente, porém, ouviu que alguém dava pancadinhas na
mesa. As vozes silenciaram, e então o Reitor falou.
– Cavalheiros, tenho certeza de que falo por todos ao dar as boas-vindas a Lorde
Asriel. As visitas dele são raras, porém imensamente preciosas, e sei que esta noite
ele tem algo de grande interesse para nos mostrar. Como todos sabemos, estamos
numa época de grande tensão política; Lorde Asriel tem que estar amanhã cedo em
White Hall, e há um trem esperando com a caldeira cheia de vapor para levá-lo a
Londres assim que tivermos terminado esta conversa; portanto, devemos utilizar o
tempo com sabedoria. Imagino que quando ele terminar de falar haverá algumas
perguntas; por favor, que sejam breves e relevantes. Lorde Asriel, gostaria de
começar?
– Obrigado, Reitor – disse Lorde Asriel. – Para começar, tenho alguns
fotogramas para lhes mostrar. Vice-reitor, acho que vai enxergar melhor daqui. Talvez o
Reitor queira sentar-se ali perto do armário.
O velho Vice-reitor era quase cego, de modo que era uma questão de cortesia
arranjar-lhe um lugar perto da tela, e isso fez com que o Reitor acabasse sentado ao
lado do Bibliotecário, a menos de um metro do armário onde Lyra estava acocorada.
Ela ouviu o Reitor murmurar enquanto se acomodava na poltrona:
– Esse demônio! Ele sabia do vinho, tenho certeza.
O Bibliotecário cochichou de volta:
– Ele vai pedir dinheiro. Se forçar uma votação...
– Se ele fizer isso, temos que nos opor, com toda a eloquência que pudermos.
A lanterna começou a chiar enquanto Lorde Asriel bombeava-a com força. Lyra
moveu-se ligeiramente para conseguir enxergar a tela, onde agora brilhava um círculo
branco. Lorde Asriel pediu:
– Alguém pode diminuir a luz da lamparina?
Um dos Catedráticos levantou-se para fazer isso, e o aposento escureceu. Lorde
Asriel começou:
– Como alguns de vocês já sabem, há doze meses parti para o Norte numa visita
diplomática ao Rei da Lapônia. Pelo menos é o que eu fingia que ia fazer. Minha
verdadeira intenção era chegar ainda mais ao norte, até o gelo, para tentar descobrir o
que aconteceu com a expedição Grumman. Uma das últimas mensagens de Grumman
para a Academia em Berlim falava de um certo fenômeno natural que só é visto nas
terras do Norte. Eu estava decidido a investigar isso, e também a descobrir o que
pudesse sobre Grumman. Mas a primeira figura que vou lhes mostrar não se refere a
qualquer dessas coisas.
E ele colocou o primeiro slide na armação e deslisou-o para trás da lente. Um
fotograma circular em preto e branco bem contrastado apareceu na tela. Tinha sido
tirado à noite, sob a lua cheia, e mostrava um casebre de madeira a meia distância, as
paredes escuras contra a neve que o rodeava e jazia espessa no telhado. Ao lado do
casebre, havia uma série de instrumentos filosóficos que aos olhos de Lyra eram como
alguma coisa do Parque Anbárico na estrada para Yarnton: antenas, fios, isoladores de
porcelana, tudo brilhando ao luar e pesadamente coberto de gelo. Um homem envolto
em peles, o rosto mal visível pela abertura do capuz, postava-se em primeiro plano,
com a mão erguida como numa saudação. Ao lado dele, podia-se observar uma figura
menor. A lua banhava tudo na mesma claridade pálida.
–Este fotograma foi feito com uma emulsão padrão, de nitrato de prata – Lorde
Asriel informou. – Quero que vejam outro, tirado no mesmo local apenas um minuto
depois, com uma nova emulsão, de preparo especial.
Ele retirou o primeiro slide e colocou outro no lugar. Esse era bem mais escuro;
era como se o luar tivesse sido bloqueado por um filtro. O horizonte ainda estava
visível, com a sombra escura do casebre e o telhado coberto de neve clara
destacando- se, porém a complexidade dos instrumentos estava oculta na escuridão.
Mas o homem havia mudado inteiramente: estava banhado em luz, e uma fonte de
partículas cintilantes parecia jorrar da sua mão erguida.
– Esta luz está subindo ou descendo? – perguntou o Capelão.
– Está descendo – respondeu Lorde Asriel. – Mas não é luz. É Pó.
Alguma coisa no modo como ele disse isso fez Lyra imaginar "Pó" com letra
maiúscula, como se não fosse uma poeira comum. A reação dos Catedráticos
confirmou sua sensação, porque as palavras de Lorde Asriel provocaram um silêncio
súbito e coletivo, seguido por exclamações de incredulidade.
– Mas, como...
– É claro que...
– Não se pode...
– Cavalheiros! – fez-se ouvir a voz do Capelão. –Vamos deixar Lorde Asriel
explicar.
– É Pó – repetiu Lorde Asriel. – É registrado como luz porque as partículas de
poeira afetam essa emulsão como os fótons afetam a emulsão de nitrato de prata. Foi
em parte para testar isso que a minha expedição ao Norte foi montada. Como podem
perceber, a figura do homem está perfeitamente visível. Agora quero que observem a
figura à esquerda dele. Indicou a sombra desfocada da figura menor.
– Pensei que era o daemon do homem – disse o Inquiridor.
– Não. O daemon estava enrolado no pescoço dele em forma de serpente. A
figura que os senhores não conseguem ver muito bem é uma criança.
– Uma criança seccionada? – perguntou alguém; a maneira como essa pessoa se
interrompeu mostrava que ela sabia que aquilo era uma coisa que não devia ter sido
dita.
Houve um silêncio intenso. Então Lorde Asriel disse calmamente:
– Uma criança completa. O que, dada a natureza do Pó, é exatamente o xis da
questão, não é?
Durante vários segundos ninguém falou. Então ouviu-se a voz do Capelão.
– Ah – fez ele, como um homem sedento que, tendo acabado de beber à vontade,
baixa o copo para poder soltar a respiração que estava prendendo enquanto bebia. – E
os rios de Pó...
– Caem do céu e o banham no que parece ser luz. Podem examinar este
fotograma com toda minúcia. Vou deixá-lo com vocês. Estou mostrando agora para
demonstrar o efeito dessa nova emulsão. Mas gostaria de lhes mostrar outro.
Ele mudou o slide. O fotograma seguinte também tinha sido tirado à noite, mas
dessa vez sem lua. Mostrava um grupo de tendas em primeiro plano, vagamente
delineadas contra o horizonte baixo, e atrás delas um monte de caixotes e um trenó.
Mas o maior interesse da figura estava no céu. Jorros e véus de luz pendiam
como cortinas, enlaçando-se e enfestoando ganchos invisíveis com centenas de
quilômetros de altura ou deslizando de lado no sopro de um vento inimaginável.
– Que é aquilo? – fez a voz do Vice-reitor.
– É um retrato da Aurora Boreal.
– É um lindo fotograma – disse o Catedrático de palmeriano. – Dos melhores
que já vi.
– Perdoe minha ignorância – interpôs a voz trêmula do Diretor do Coral. – Mas se
eu algum dia já soube o que é a Aurora Boreal, já esqueci. É o que eles chamam de
Luzes do Norte?
– É. Ela tem muitos nomes. É composta de tempestades de partículas
carregadas e raios solares de força intensa e extraordinária. São invisíveis, mas
provocam esta irradiação luminosa quando interagem com a atmosfera. Se houvesse
tempo, eu teria mandado pintar este slide para lhes mostrar as cores; verde e rosa
claros, na maior parte, com um toque de escarlate ao longo da borda inferior daquela
formação que parece uma cortina. Isto foi tirado com emulsão comum. Agora quero
que vejam uma imagem tirada com a emulsão especial.
Ele retirou o slide. Lyra ouviu o Reitor dizer baixinho:
– Se ele forçar uma votação, podemos tentar invocar a cláusula de residência. Ele
ficou fora da Faculdade durante 30 das últimas 52 semanas.
– Ele já tem o apoio do Capelão... – murmurou em resposta o Bibliotecário.
Lorde Asriel colocou um novo slide atrás da lente. A cena era a mesma: como
acontecera com o outro par de fotos, muitas coisas visíveis à luz comum eram muito
mais escuras neste, assim como as cortinas de luz no céu.
Mas, no centro da Aurora, bem acima da paisagem sombria, Lyra distinguia
alguma coisa sólida. Pressionou o rosto na fresta para ver melhor e constatou que os
Catedráticos perto da tela também se inclinavam para a frente. Seu assombro cresceu
ao ver ali no céu o contorno inconfundível de uma cidade: torres, domos, muralhas...
prédios e ruas, suspensos no ar! Ela quase engasgou-se de susto.
O Catedrático de cassington comentou:
– Aquilo ali parece... uma cidade!
– Exatamente – confirmou Lorde Asriel.
– Uma cidade em outro mundo, sem dúvida? – o Decano falou, em tom de
desprezo.
Lorde Asriel ignorou-o. Havia um frêmito de excitação entre alguns Catedráticos,
como se, tendo escrito tratados sobre a existência do unicórnio sem jamais terem visto
um, lhes fosse apresentado um exemplar vivo, recém-capturado.
– É aquele negócio do Barnard-Stokes? – quis saber o Catedrático de
palmeriano. – É, sim, não é?
– É isto que eu quero descobrir – disse Lorde Asriel.
Ele postou-se a um lado da tela iluminada. Lyra via seus olhos escuros
observando os Catedráticos que contemplavam o slide da Aurora; ela via também, ao
lado dele, o brilho verde dos olhos de seu daemon. Todas as cabeças veneráveis
estavam eretas, os óculos brilhando; apenas o Reitor e o Bibliotecário estavam
recostados em suas poltronas, com as cabeças muito juntas.
O Capelão estava dizendo:
– O senhor diz que estava procurando notícias da expedição Grumman, Lorde
Asriel. O Dr. Grumman também estava investigando este fenômeno?
– Acredito que sim, e acredito também que conseguiu bastante informação sobre
isso. Mas ele não vai poder nos contar, porque está morto.
– Não! – exclamou o Capelão.
– Infelizmente sim, e eu tenho a prova aqui comigo.
Uma onda de excitada apreensão percorreu a Sala Privativa enquanto, sob ordens
de Lorde Asriel, dois ou três Catedráticos mais jovens carregaram a caixa de madeira
para a frente da sala.
Lorde Asriel retirou o último slide, mas deixou a lanterna acesa e, no brilho teatral
do círculo de luz, inclinou-se para abrir a caixa com um pé-de-cabra. Lyra ouviu o
rangido de pregos saindo de madeira úmida. O Reitor ficou de pé para enxergar,
tapando a visão de Lyra. O tio dela tornou a falar:
– Se vocês se lembram, a expedição de Grumman desapareceu há dezoito
meses. A Academia Alemã mandou-o avançar para o norte até chegar ao pólo
magnético, e ali fazer várias observações astronômicas. Foi durante essa viagem que
ele observou o curioso fenômeno que acabamos de ver. Logo depois, ele desapareceu;
supõe-se quetenha tido um acidente, e seu corpo esteja todo esse tempo caído numa
fenda qualquer. Na verdade, não houve acidente algum.
– Que é que você tem aí? – perguntou o Decano. –É um saco de lixo de um
aspirador de pó?
Lorde Asriel não respondeu logo. Lyra ouviu o estalido de presilhas de metal e um
sibilo de ar penetrando num objeto, e depois houve silêncio. Mas o silêncio não durou
muito; depois de um instante, Lyra ouviu uma explosão de exclamações confusas: gritos
de horror, protestos veementes, vozes alteadas de raiva e medo.
– Mas o que...
– Não é humano...
– Ele foi...
– Mas que foi que aconteceu com ele?
A voz do Reitor calou todas as outras:
– Lorde Asriel, em nome de Deus, que é que o senhor tem aí?
– Esta é a cabeça de Stanislaus Grumman – a voz de Lorde Asriel disse.
Acima do ruído de vozes, Lyra ouviu alguém ir tropeçando até a porta e sair,
soltando gemidos incoerentes. Ela desejou poder ver o que eles estavam vendo. Lorde
Asriel continuou:
– Encontrei o corpo dele conservado no gelo perto de Svalbard. Os assassinos
fizeram isto na cabeça dele. Reparem no padrão de escalpelo característico. Acho que
o senhor deve estar familiarizado com isto, Vice-reitor.
A voz do ancião era firme ao responder:
– Já vi os tártaros fazerem isso. É uma técnica encontrada entre os aborígenes
da
Sibéria e do Tungusk{5}. De lá, naturalmente, essa prática espalhou-se para as
terras
dos escraelingues{6}, embora eu acredite que ela agora esteja proibida na Nova
Dinamarca. Posso examinar de perto, Lorde Asriel?
Depois de um silêncio breve, ele tornou a falar.
– Minha visão não é muito nítida, e o gelo está sujo, mas me parece que há um buraco no alto do crânio. Estou certo?
– Está, sim.
– Uma trepanação?
– Exatamente.
Isso provocou um murmúrio de excitação. O Reitor saiu da frente, e Lyra tornou a enxergar a cena. O velho Vice-reitor, no círculo de luz do lampião, segurava um pesado bloco de gelo bem perto dos olhos, e Lyra conseguiu ver o objeto dentro dele: uma bola sanguinolenta quase irreconhecível como uma cabeça humana. Pantalaimon esvoaçou
em volta de Lyra, e sua aflição perturbou-a.
– Psiu, escute – ela sussurrou.
– O Dr. Grumman já foi Catedrático nesta Faculdade – disse o Decano em tom veemente.
– Cair nas mãos dos tártaros...
– Mas tão ao norte?
– Eles devem ter penetrado mais do que se imaginava!
– Será que ouvi o senhor dizer que o encontrou perto de Svalbard? – perguntou o Decano.
– Isso mesmo.
– Então está querendo dizer que os panserbjornes têm algo haver com isto? Lyra não reconheceu aquela palavra, mas obviamente os Catedráticos sim.
– Impossível – disse o Catedrático de cassington com firmeza. – Eles nunca se comportariam assim.
– Então não conhece Iofur Raknison – retrucou o Catedrático de palmeriano, que tinha feito ele próprio várias expedições às regiões árticas. – Não me surpreenderia que ele tenha começado a escalpelar as pessoas à moda dos tártaros.
Lyra tornou a olhar para o tio, que observava os Catedráticos com um brilho de
humor sardônico, sem nada dizer.
– Quem é Iofur Raknison? – alguém perguntou.
– O rei de Svalbard – esclareceu o Catedrático de palmeriano. – Sim, é isso mesmo, um dos panserbjornes. Ele é uma espécie de usurpador; chegou ao trono através de truques, pelo que sei; mas é uma figura poderosa, nem um pouco tolo, apesar de suas afetações ridículas: construir um palácio de mármore importado, criar o que ele chama de uma universidade...
– Para quem? Para os ursos? – interpôs outra pessoa, e todos riram.
Mas o Catedrático de palmeriano prosseguiu:
– Eu lhes digo que Iofur Raknison seria capaz de fazer isso a Grumman. Ao
mesmo tempo, a poder de lisonjas, pode-se fazer com que ele se comporte de maneira
bem diferente.
– E o senhor sabe fazer isso bem, não é, Trelawney? – comentou o Decano com
zombaria.
– Claro que sei. Quer saber o que ele deseja acima de tudo? Até mais do que um
diploma honorário? Ele quer um daemon! Se alguém descobrir um meio de lhe dar um
daemon, ele fará qualquer coisa.
Os Catedráticos riram com vontade.
Lyra acompanhava isso tudo com perplexidade: o que o Catedrático de palmeriano tinha dito não fazia sentido. Além disso, ela estava impaciente para ouvir
mais sobre o escalpelamento, e as Luzes do Norte, e aquele Pó misterioso. Mas ficou
decepcionada, pois Lorde Asriel havia terminado de mostrar suas relíquias e suas
fotos, e a conversa logo se transformou num debate acadêmico sobre a conveniência
ou não de lhe dar dinheiro para outra expedição. Os argumentos eram disparados de
um lado para outro, e Lyra sentiu os olhos pesarem. Logo estava dormindo a sono
solto, com Pantalaimon enrolado em seu pescoço, na sua forma de dormir favorita:
como um arminho. Ela despertou com um susto quando alguém a sacudiu pelo ombro.
– Quieta! – ordenou o tio. A porta do armário estava aberta, e ele estava
agachado na frente da luz. – Foram todos embora, mas ainda há alguns criados por aí.
Vá para o seu quarto agora, e cuide para não falar a ninguém sobre isso.
– Eles resolveram lhe dar o dinheiro? – ela perguntou com voz sonolenta.
– Sim.
– Que é Pó? – ela continuou, esforçando-se para ficar de pé depois de passar
tanto tempo apertada.
– Não lhe interessa.
– Interessa, sim – ela retrucou. – Se queria que eu fosse uma espiã no armário,
devia me contar sobre o que eu estou espionando. Posso ver a cabeça do homem?
A alva pelagem de arminho de Pantalaimon arrepiou-se; ela sentiu cócegas no
pescoço. Lorde Asriel soltou uma risada curta.
– Não seja mórbida – disse, e começou a guardar os slides e a caixa de
espécimes. Vigiou o Reitor?
– Sim, e ele procurou o vinho antes de qualquer outra coisa.
– Ótimo. Por enquanto eu o derrotei. Agora faça o que mandei, vá para a cama.
– Mas para onde o senhor vai?
– De volta para o Norte. Parto em dez minutos.
– Posso ir Junto?
Ele interrompeu o que estava fazendo e olhou-a como se fosse a primeira vez.
Seu daemon também voltou para ela os enormes olhos verdes de pantera, e, sob os
olharesconcentrados de ambos, Lyra enrubesceu. Mas encarou-os com firmeza.
– Seu lugar é aqui – disse o tio finalmente.
– Mas por quê? Por que meu lugar é aqui? Porque não posso ir para o Norte com
o senhor? Quero ver as Luzes do Norte, os ursos, os icebergs e tudo mais. Quero
conhecer o Pó. E aquela cidade no ar. É um outro mundo?
– Você não vai, garota. Tire isso da cabeça; estamos numa época perigosa
demais. Faça o que lhe mando e vá para a cama; se se comportar, trago-lhe uma
presa de leão- marinho entalhada pelos esquimós. Não discuta mais, ou vou ficar muito
zangado.
E o daemon dele rosnou com tal ferocidade que Lyra de repente tomou
consciência de como seria sentir aqueles dentes na garganta.
Lyra apertou os lábios e olhou de cara feia para o tio. Ele estava retirando o ar do
compartimento de vácuo e não percebeu; era como se já a tivesse esquecido. Sem
uma palavra, mas com os lábios apertados e o olhar furibundo, a garota e seu daemon
saíram e foram para a cama.
O Reitor e o Bibliotecário eram velhos amigos e aliados, e tinham o costume,
depois de um episódio difícil, de beber uma taça de BrantWijn{7} e consolar-se
mutuamente. Assim, depois que se despediram de Lorde Asriel, eles foram até os
aposentos do Reitor e se acomodaram no escritório dele; com as cortinas fechadas e o
fogo na lareira reforçado, seus daemons nos lugares de costume, sobre o joelho ou o
ombro, eles se prepararam para conversar a respeito do que acabara de ocorrer.
– Acredita mesmo que ele sabia do vinho? –perguntou o Bibliotecário.
– Claro que sabia! Não imagino como, mas ele sabia, e derrubou a garrafa. Claro
que foi.
–Perdão, Reitor, mas não consigo deixar de me sentir aliviado. Não estava
gostando da idéia de...
– De envenená-lo?
– Sim. De assassinato.
– Acho que ninguém gosta disso, Charles. O caso era se fazer isso seria pior do
que as conseqüências de não fazer. Bom, alguma Providência interveio, e não
aconteceu. Só lamento ter perturbado você com essa informação.
– Não, não – protestou o Bibliotecário. – Mas eu queria que o senhor tivesse me
contado mais.
O Reitor ficou em silêncio por um instante, antes de dizer:
– É, talvez eu devesse mesmo. O aletômetro{8} avisa que as conseqüências serão
funestas se Lorde Asriel continuar com sua pesquisa. Além do mais, a criança será
envolvida e quero mantê-la a salvo enquanto for possível.
– As atividades de Lorde Asriel têm alguma coisa a ver com essa nova iniciativa
do Tribunal Consistorial de Disciplina? Aquele tal de... como é mesmo o nome?
...Conselho de Oblação?
– Lorde Asriel... não, não. Pelo contrário. Também o Conselho de Oblação não
está totalmente subordinado ao Tribunal Consistorial. É uma iniciativa semiprivada; está
sendo dirigida por alguém que não gosta de Lorde Asriel. Entre os dois, Charles, eu
tremo.O Bibliotecário ficou calado. Desde que o Papa João Calvino havia transferido a
sede do Papado para Gênova e criado o Tribunal Consistorial de Disciplina, o poder da
Igreja sobre todos os aspectos da vida tinha sido absoluto. O próprio Papado fora
abolido após a morte de Calvino, e em seu lugar crescera um emaranhado de tribunais,
colegiados e conselhos, conhecidos coletivamente como o Magisterium. Esses órgãos
nem sempre eram unidos; às vezes crescia entre eles uma amarga rivalidade.
Durante grande parte do século anterior, o mais poderoso deles tinha sido o
Colegiado dos Bispos, porém, nos anos mais recentes, o Tribunal Consistorial de
Disciplina tinha se tornado o mais atuante e o mais temido de todos os órgãos da
Igreja.Mas era sempre possível que entidades independentes crescessem sob a
proteção de outra facção do Magisterium, e o Conselho de Oblação mencionado pelo
Bibliotecário era uma dessas. O Bibliotecário não sabia muita coisa sobre ele, mas as
coisas que ouvira causavam-lhe desagrado e temor, de modo que ele compreendia
perfeitamente a aflição do Reitor.
– O Catedrático de palmeriano citou um nome – disse, depois de um instante. –
Barnard- Stokes? Que negócio é esse de Barnard-Stokes?
– Ah, não é da nossa esfera, Charles. Pelo que entendi, a Santa Igreja ensina que
existem dois mundos: o mundo de tudo que podemos ver, ouvir e tocar, e outro mundo,
o mundo espiritual do céu e do inferno. Barnard e Stokes eram dois teólogos... como
posso dizer?.. dois teólogos renegados, que postulavam a existência de vários outros
mundos como este aqui, nem céu nem inferno, mas materiais e pecaminosos. Estão
aqui, bem próximos, mas invisíveis e inatingíveis. Naturalmente a Santa Igreja
desaprovou essa heresia abominável, e Barnard e Stokes foram silenciados. Mas,
infelizmente para o Magisterium, parece haver sólidas provas matemáticas a favor
dessa teoria dos outros mundos. Eu próprio nunca as estudei, mas o Catedrático de
cassington me disse que são muito sólidas.
– E agora Lorde Asriel tirou uma foto de um desses outros mundos – completou o
Bibliotecário. – E nós lhe demos financiamento para ir procurá-los. Entendo.
– Isso mesmo. O Conselho de Oblação e seus protetores poderosos irão pensar
que a Faculdade Jordan é um antro de apoio à heresia. E entre o Tribunal Consistorial
e o Conselho de Oblação, Charles, tenho que manter o equilíbrio; enquanto isso, a
criança está crescendo. Sei que não a esqueceram; mais cedo ou mais tarde, ela seria
envolvida, mas será arrastada agora, com ou sem a minha proteção.
– Mas, pelo amor de Deus, como é que o senhor sabe disso? Foi o aletômetro de
novo?
– Foi, sim. Lyra tem um papel importante a desempenhar. A ironia é que ela tem
que fazer tudo sem saber o que está fazendo. Mas pode ser ajudada, e se meu plano
com o Tokay tivesse dado certo, ela ficaria em segurança por mais algum tempo. Eu
gostaria de lhe poupar uma viagem para o Norte. Acima de tudo, eu queria poder
explicar a ela...
– Ela não ia prestar atenção – contrapôs o Bibliotecário.
– Conheço muito bem o jeito dela. Se alguém tentar lhe dizer qualquer coisa séria,
ela escuta mal e mal por cinco minutos e aí começa a se distrair. E não adianta lhe
fazer perguntas depois, porque ela terá esquecido tudo.
– E se eu conversasse com ela sobre o Pó? Não acha que ela iria prestar
atenção?
O Bibliotecário fez um ruído indicando até que ponto achava isso improvável.
– Por que ela iria prestar atenção? – perguntou. –Por que um enigma teológico
distante interessaria a uma criança cheia de saúde e de instintos?
– Por causa do que ela terá que viver. Inclusive uma grande traição...
– Quem é que vai atraiçoá-la?
– Não, não, essa é que é a coisa mais triste: ela é quem vai trair, e a experiência
será terrível. É claro que ela não pode saber disso, mas não há uma razão para ela
não saber sobre o problema do Pó. E você pode estar enganado, Charles; ela pode
muito bem interessar-se, se lhe for explicado de maneira simples. E pode ser que isso
a ajude depois. Certamente ajudaria a diminuir a minha ansiedade.
– Este é o dever dos velhos: ter ansiedade por causa dos jovens – comentou o
Bibliotecário. – E o dever dos jovens é desdenhar a ansiedade dos velhos.
Depois de algum tempo, os dois se despediram, pois era tarde e eles eram
velhos e ansiosos.

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