sábado, 18 de outubro de 2014

6- As Tarrafas

    Ela caminhou depressa, afastando-se do rio, porque a calçada ao longo da
margem era larga e bem iluminada. Havia um emaranhado de ruelas entre aquele
lugar e o Régio Instituto do Pólo Ártico, que era o único lugar que Lyra tinha
certeza de conseguir localizar, e foi nesse labirinto escuro que ela penetrou.
Se ao menos conhecesse Londres tão bem quanto conhecia Oxford! Então
saberia as ruas a serem evitadas, ou onde conseguiria comida, ou, melhor que
tudo, em que porta bater para conseguir abrigo. Naquela noite fria, os becos
escuros à sua volta pululavam de movimento e vida secreta, e ela de nada sabia
sobre isso.
    Pantalaimon tornou-se um gato-do-mato, passando a examinar a escuridão
com seus olhos que enxergavam à noite. A todo momento, ele parava, arrepiando-se, e
ela evitava a ruela em que estava prestes a entrar .A noite estava cheia de ruídos;
gargalhadas ébrias, duas vozes estridentes elevando-se numa canção, estalidos e
rangidos vindo de alguma máquina mal lubrificada num porão qualquer. Lyra caminhava
cuidadosamente por isso tudo, mantendo-se nas sombras e nos becos estreitos, seus
sentidos expandidos e misturados com os de Pantalaimon.
    De vez em quando, ela precisava atravessar uma rua mais larga, bem iluminada,
onde os bondes zumbiam e faiscavam sob seus fios anbáricos. Havia regras para
atravessar as ruas londrinas, mas ela não dava atenção a isso, e quando alguém
gritava, ela fugia.
    Era ótimo estar livre outra vez! Ela sabia que Pantalaimon, caminhando com seus
passinhos de gato-do-mato a seu lado, sentia a mesma alegria por estar ao ar livre,
mesmo sendo o poluído ar londrino, carregado de fumaça e fuligem, e repleto de
barulho. Eles logo teriam que meditar sobre o significado do que tinham ouvido no
apartamento da Sra. Coulter, mas ainda não era o momento. E em algum momento
teriam que encontrar um lugar para dormir.
     Numa esquina onde havia uma grande loja de departamentos com vitrines cujo
brilho se espelhava na calçada molhada, havia também uma banca de café: uma
barraquinha sobre rodas com um balcão sob a janela de madeira que se abria para
cima e ficava como um toldo. Lá dentro brilhava uma luz amarela, e o cheiro do café
espalhava-se pelo ar. O proprietário, de jaleco branco, estava debruçado sobre o
balcão, conversando com dois ou três fregueses.
    Aquilo era tentador; Lyra estava andando havia uma hora, e a noite estava fria e
úmida. Com Pantalaimon transformado em pardal, ela foi até o balcão e levantou a mão
para chamar a atenção do proprietário.
– Um café e um sanduíche de presunto – pediu.
– Está na rua até tarde, minha cara – disse um cavalheiro de cartola e cachecol
de seda.
– É – fez ela, dando-lhe as costas para observar o movimentado cruzamento.
Num teatro ali perto, a sessão terminara e grupos de pessoas ocupavam a
calçada iluminada, chamando os táxis aos gritos, vestindo os sobretudos. Na outra
direção ficava a entrada de uma Estação de Trem Ctônico{12}, com muita gente subindo
e descendo a escada.
– Pronto, meu bem – disse o dono da barraca. –são dois xelins.
– Deixe que eu pago – ofereceu o homem de cartola.
Lyra pensou: por que não? Consigo correr mais depressa que ele, e mais tarde
posso precisar de todo o meu dinheiro. O homem de cartola deixou cair uma moeda no
balcão e sorriu para ela. Seu daemon era uma lêmure; agarrada à lapela dele, ela
encarava Lyra de olhos arregalados.
Lyra mordeu o sanduíche, com os olhos voltados para o movimento da rua. Não
tinha idéia de onde estava, porque nunca havia visto um mapa de Londres e sequer
sabia o tamanho da cidade e se teria que caminhar muito para chegar ao campo.
– Qual é o seu nome? – o homem perguntou.
– Alice.
– Que lindo nome. Deixe-me colocar uma gotinha disso no seu café... Para lhe dar
calor... Ele estava tirando a tampa de um frasco de prata.
– Não gosto – protestou ela. – Gosto só de café.
– Aposto que nunca tomou conhaque assim antes.
– Tomei, sim. Vomitei tudo. Tomei uma garrafa inteira, ou quase.
– Faça como quiser – disse o homem, vertendo o conhaque em seu próprio café.
– Aonde está indo, assim sozinha?
– Vou me encontrar com meu pai.
– E quem é ele?
– É um assassino.
– Ele é o quê?
– Já disse, um assassino. É a profissão dele. Está fazendo um trabalho esta
noite. Estou trazendo roupas limpas para ele, porque em geral ele está coberto de
sangue no final de um trabalho.
– Ah, você está brincando.
– Não estou, não.
A lêmure soltou um miado baixo e passou para trás da cabeça do homem, de
onde ficou espiando Lyra. Impassível, a menina bebeu o café e comeu o resto do
sanduíche.
– Boa noite – disse finalmente. – Estou vendo papai chegando. Ele parece meio
zangado.
     O homem de cartola olhou em volta, e Lyra partiu na direção da multidão em
frente ao teatro. Por mais que tivesse vontade de conhecer o Trem Ctônico (que a Sra. Coulter tinha dito que não era para pessoas de sua classe social), ela estava temerosa de ficar presa no subsolo; melhor ficar ao ar livre, onde poderia correr se quisesse. Prosseguiu em sua caminhada pelas ruas cada vez mais escuras e desertas.
Estava garoando, mas, mesmo se não houvesse nuvens no céu da cidade, as luzes não
iam deixar ver as estrelas.
Pantalaimon achava que estavam indo para o norte, mas quem poderia ter
certeza?
    Ruas infindáveis, de casinhas de tijolos idênticas, com jardins onde só cabia uma
lata de lixo; grandes e soturnas fábricas atrás de cercas de arame, com uma
única luz anbárica no alto de um muro e um vigia noturno cochilando junto ao seu
braseiro; de vez em quando um oratório desolado, que só se diferenciava de um
armazém pelo crucifixo na fachada. Uma vez ela experimentou a porta de um deles, e
ouviu um gemido vindo de um banco a um metro dela, na escuridão. Percebeu que o
pórtico do oratório estava repleto de vultos adormecidos, e fugiu.
– Onde é que vamos dormir, Pantalaimon? – ela perguntou, enquanto desciam
uma rua de lojas fechadas.
– Numa soleira qualquer.
– Mas não quero que me vejam, e elas são tão abertas...
–Há um canal ali embaixo...
     Ele estava olhando para uma rua lateral à esquerda. Realmente, uma mancha de
brilho escuro denunciava água, e quando os dois foram cautelosamente até lá,
encontraram um porto na margem de um canal onde cerca de uma dúzia de balsas
estavam amarradas aos ancoradouros, algumas altas na água, outras mais afundadas
sob o peso da carga, perto dos guindastes que mais pareciam forcas. Uma luz fraca
brilhava na janela de uma cabana de madeira, e um fio de fumaça subia da chaminé de
metal; fora isso, as únicas luzes eram colocadas no alto – na parede de um armazém
ou na cabine de um guindaste – , deixando o solo na escuridão. Nos ancoradouros,
havia pilhas de barris com álcool de carvão, pilhas de grandes troncos redondos, rolos
de cabos cobertos de cautchu.
     Lyra foi pé ante pé até a cabana e olhou pela janela. Um velho estava lendo com
dificuldade um jornal de história em quadrinhos e fumando um cachimbo, com seu
daemon-spaniel dormindo enrodilhado sobre a mesa. Enquanto Lyra espiava, o homem
levantou-se e foi buscar no fogão uma chaleira escurecida, e colocou um pouco de
água numa caneca rachada, antes de tornar a se acomodar com o jornal.
– Será que devemos pedir para ele nos deixar entrar, Pan? – ela sussurrou.
Mas ele estava ocupado, transformando-se em morcego, depois coruja, depois
novamente gato-do-mato; ela olhou em volta, sentindo o pânico dele, e então viu-os ao
mesmo tempo que ele: dois homens correndo para ela, um de cada lado, o mais
próximo segurando uma tarrafa.
Pantalaimon soltou um grito agudo e transformando-se em leopardo pulou sobre a
raposa de aparência feroz que era o daemon do homem mais próximo, jogando-a para
trás, de modo que a raposa caiu sobre as pernas do homem. O homem praguejou e
desviou-se para o lado, e Lyra passou correndo por ele, na direção do terreno aberto
do ancoradouro; o que não podia era ficar encurralada num canto.
Pantalaimon, agora uma águia, mergulhou sobre ela e gritou:
– A esquerda! A esquerda!
Ela se desviou para aquele lado e viu um espaço aberto entre os barris de álcool
de carvão e o final de um barracão de chapas de ferro, e como uma flecha correu para
lá.
Mas aquelas tarrafas!
Ela ouviu um assobio no ar, e alguma coisa caiu sobre ela, açoitando-a e picandoa
dolorosamente no rosto, e cordões imundos de piche enrolaram-se por sua cabeça,
seus braços, suas mãos, prendendo-a; ela caiu no chão, resmungando e lutando em
vão.
– Pan! Pan!
    Mas o daemon-raposa atacou o Pantalaimon-gato, e Lyra sentiu a dor em sua
própria carne, e soltou um grito forte e soluçado quando ele caiu. Um homem pôs-se a
enrolar a rede em volta das pernas dela, da garganta, do corpo, da cabeça, rolando-a
de um lado para outro no chão. Ela estava indefesa, exatamente como uma mosca
sendo enrolada pelo fio da aranha. O coitado do Pan estava se arrastando em sua
direção, com o daemon-raposa atacando-lhe as costas, e não tinha forças sequer para
mudar de forma; e o outro homem estava deitado numa poça, com uma flecha
atravessada no pescoço...
     O mundo inteiro ficou imóvel quando o homem que a enrolava na rede também viu.
Pantalaimon levantou-se até ficar sentado e pestanejou, e então houve um ruído
baixo e seco, e o homem da tarrafa caiu, engasgado e ofegante, bem por cima de
Lyra, que gritou de horror: havia sangue jorrando de dentro dele!
Passos apressados, e alguém arrastou o homem para longe e inclinou-se sobre
ele; então outras mãos ergueram Lyra, uma faca brilhou, e os cordões da tarrafa
caíram um por um, e ela desvencilhou-se, cuspindo, e correu para ajoelhar-se junto a
Pantalaimon.
Nessa posição, ela virou a cabeça para olhar os recém-chegados. Três homens
morenos, um deles armado com um arco, os outros com facas; quando a viu, o
arqueiro levou um susto.
– Não é a Lyra?
A voz era familiar, mas ela não a reconheceu até que ele avançou um passo, e a
luz caiu em seu rosto e no daemon-falcão no ombro dele. Então ela o reconheceu: um
gipcio! Um gipcio de Oxford!
– Sou Tony Costa – ele esclareceu. – Lembra-se? Você costumava brincar com
meu irmãozinho Billy nos barcos em Jericó, antes de os Papões pegarem ele.
– Ah, meu Deus, Pan, estamos salvos! – ela sussurrou.
Mas então um pensamento lhe veio à cabeça: tinha sido dos Costa o barco que
ela roubara; e se ele se lembrasse?
– É melhor vir com agente – ele disse. – Está sozinha?
– Estou. Eu fugi...
– Está bem, não fale agora. Fique quietinha. Jaxer, arraste os corpos para um
lugar escuro. Kerim, fique vigiando.
Lyra levantou-se, trêmula, segurando Pantalaimon-gato-do-mato no colo. Ele
tentava girar o corpo para ver alguma coisa; ela seguiu o olhar dele, compreendendo e
de repente curiosa também: que é que tinha acontecido aos daemons dos mortos?
Eles estavam esmaecendo, essa era a resposta; desvanecendo-se e se
dispersando no ar como átomos de fumaça, embora se esforçassem para ficar
agarrados aos homens. Pantalaimon desviou o olhar, e Lyra correu às cegas atrás de
Tony Costa.
– Que é que está fazendo aqui? – ela perguntou.
– Quieta, garota. Já temos problemas suficientes. Vamos conversar no barco.
Ele levou-a por uma pontezinha de madeira para o coração do porto. Os outros
dois homens os acompanhavam silenciosamente. Tony seguiu ao longo da beira do cais
e saiu para um trapiche de madeira; passou para um barco estreito e abriu a porta da
cabine.
– Entre depressa – instruiu.
Lyra obedeceu, apalpando a bolsa (que não soltara nem uma vez, mesmo presa
na rede) para ter certeza de que o aletômetro ainda estava lá. Na cabine comprida e
estreita, à luz de uma lamparina presa num gancho, ela viu uma mulher forte e
corpulenta, de cabelos grisalhos, sentada a uma mesa com um jornal. Lyra reconheceu
a mãe de Billy.
– Quem é esta? – a mulher quis saber. – Ora, será a Lyra?
– Isso mesmo. Mamãe, temos que sair daqui. Matamos dois homens lá no porto.
Pensamos que eram Papões, mas acho que eram mercadores turcos. Tinham agarrado
a Lyra. Vamos deixar a conversa para depois, quando estivermos em movimento.
– Venha cá, criança – chamou Mamãe Costa.
Lyra obedeceu, meio aliviada, meio apreensiva, pois Mãe Costa tinha mãos como
porretes, e agora ela tinha certeza: fora mesmo o barco deles que ela capturara com
Roger e outros amigos das faculdades. Mas a mulher colocou as mãos de cada lado
do rosto de Lyra, e seu daemon – um enorme cachorro cinzento que parecia um lobo
inclinou- se para lamber delicadamente a cabeça de gato-do-mato de Pantalaimon.
Então Mãe Costa rodeou Lyra com seus braços enormes e apertou-a contra os seios.
– Não sei o que você está fazendo aqui, mas parece exausta. Pode usar a cama
do Billy, depois que eu lhe der uma bebida quente. Sente-se aqui, criança.
Parecia que o ato de pirataria tinha sido perdoado, ou pelo menos esquecido.
Lyra deslizou pela almofada do banco atrás de uma mesa de tampo de pinho enquanto
o ronco baixo do motor a gasolina sacudia o barco.
– Aonde vamos? – Lyra perguntou.
Mãe Costa estava colocando uma panela de leite sobre o fogão de ferro e
cutucando por entre a grade para avivar o fogo.
– Para longe daqui. Não fale agora. Vamos conversar de manhã.
     E nada mais disse; entregou uma xícara de leite quente a Lyra e subiu para o
convés quando o barco se pôs em movimento, trocando cochichos com os homens de
vez em quando. Lyra bebeu o leite devagar e ergueu uma ponta da cortina para
observar os ancoradouros escuros que passavam pela janela. Minutos depois estava
dormindo profundamente.
     Despertou numa cama estreita, com o reconfortante ronco do motor soando lá
embaixo. Ela se sentou, bateu com a cabeça, soltou um palavrão, tateou em volta e
levantou-se com mais cuidado. Uma luz cinzenta permitia ver três outras camas, todas
vazias e bem arrumadas, uma abaixo da dela e as outras duas do outro lado da
minúscula cabine. Ela percebeu que estava usando apenas suas roupas de baixo, e viu
o vestido e o casaco de pele de lobo dobrados na ponta da sua cama, junto com sua
bolsa. O aletômetro ainda estava lá.
     Vestiu-se depressa e saiu pela porta no fundo do compartimento, encontrando-se
na cozinha do barco, onde estava mais quente por causa do fogão. Não havia pessoa
alguma ali. Pelas janelas, ela viu um lençol de neblina espessa, com formas escuras
que poderiam ser prédios ou árvores.
Antes que pudesse subir para o convés, a porta para fora abriu-se, e Mãe Costa
desceu, enrolada num velho casaco de tweed onde a umidade tinha formado milhares
de pequenas pérolas.
– Dormiu bem? – perguntou, pegando uma frigideira.
– Agora vá se sentar fora do meu caminho e eu vou lhe fazer um café da manhã.
Não fique aí de pé; isso aqui é muito apertado.
– Onde é que estamos? – Lyra perguntou.
– No Canal Grand Junction. Você fique escondida, criança. Não quero ver você lá
fora. Há problemas.
Ela colocou duas fatias de bacon e um ovo na frigideira.
– Que tipo de problemas?
– Nada que a gente não consiga resolver, se você ficar escondida.
E não quis dizer mais nada até Lyra ter acabado de comer.
Em certo momento, o barco diminuiu a velocidade, e alguma coisa bateu na lateral
dele, e ela ouviu vozes masculinas irritadas; então uma piada de alguém fez com que
rissem, as vozes se afastaram e o barco retomou seu caminho.
Finalmente Tony Costa desceu para a cabine. Como a mãe, sua roupa tinha
pérolas de umidade, e ele sacudiu a touca de lã sobre o fogão para fazer as gotas
saltarem sobre a chapa quente.
– Que é que vamos dizer a ela, Mãe?
– Perguntar primeiro, contar depois.
Ele serviu café numa xícara de lata e sentou-se. Era um homem forte e sisudo, e
agora que podia vê-lo à luz do dia, Lyra viu em seu rosto uma expressão de tristeza.
– Certo – ele concordou. – Agora você vai nos contar o que estava fazendo em
Londres, Lyra. Pensávamos que tinha sido levada pelos Papões.
– Eu estava morando com uma dama, certo, então...
Com dificuldade Lyra juntou e arrumou sua história, como se estivesse
preparando um baralho para uma partida. Contou-lhes tudo, menos sobre o aletômetro.
– E então ontem à noite no tal do coquetel eu descobri o que eles faziam mesmo.
A Sra. Coulter faz parte dos Papões, e ia me usar para ajudar a pegar mais crianças. E
o jeito de fazer isso é...
Mãe Costa saiu da cabine e foi para o convés. Tony esperou até que ela fechasse
a porta e disse:
– Sabemos o que eles fazem. Pelo menos um pedaço. Sabemos que elas não
voltam. As crianças são levadas para o Norte, bem longe, e eles fazem experiências
com elas. No princípio, a gente achava que experimentavam doenças e remédios, mas
não há motivo para começar isso de repente, há dois ou três anos. Então ficamos
achando que eram os tártaros, talvez algum acordo secreto que estivessem fazendo lá
pela Sibéria; porque os tártaros querem ir para o Norte tanto quanto o resto, por causa
do álcool de carvão e das minas de fogo, e os boatos de guerra começaram antes dos
Papões. E achamos que os Papões estivessem subornando os chefes tártaros dandolhes
crianças, porque os tártaros comem crianças, não é? Assam e comem.
– Essa não!
– Comem, sim. Têm muitas outras coisas para contar. Você já ouviu falar nos
Nalkainens?
– Não, nunca. Nem pela Sra. Coulter. Quem são eles?
– É um tipo de fantasma que existe lá em cima naquelas florestas. É do tamanho
de uma criança, mas não tem cabeça. De noite se guiam pelo tato, e se a pessoa está
dormindo na floresta, eles pegam ela e não soltam por nada neste mundo. Essa
palavra, nalkainen, vem do Norte. E os chupadores de ar também são perigosos. Ficam
deslizando pelo ar. As vezes a gente encontra um monte deles boiando, ou presos nos
galhos. Assim que eles tocam na pessoa, ela perde toda a força. A gente não
consegue ver esses fantasmas, só uma espécie de ondulação no ar. E os sem-ares...
– Quem são eles?
– São guerreiros semimortos. Estar vivo é uma coisa, estar morto é outra, mas
estar meio-morto é pior que tudo. Eles não conseguem morrer e não podem mais viver.
Ficam vagando para sempre. São chamados de sem-ares por causa do que fazem a
eles.
– O quê? – perguntou Lyra de olhos arregalados.
– Os tártaros do norte abrem as costelas deles e puxam para fora os pulmões.
Fazer isso é uma arte; os guerreiros não morrem, mas seus pulmões só trabalham
quando seus daemons os bombeiam manualmente, de modo que o resultado é que
estão sempre no meio do caminho entre respirar e não respirar, entre a vida e a morte.
Estão meio-mortos, entende? E os daemons deles têm que bombear dia e noite, para
não morrerem junto com os guerreiros. Dizem que às vezes na floresta a gente
encontra um batalhão inteiro de sem-ares. E existem também os panserbjornes, já
ouviu falar? Significa ursos de armadura. São uma espécie de ursos polares, só que...
– É, já ouvi falar neles! Ontem à noite um dos homens disse que o meu tio, o
Lorde Asriel, está preso numa fortaleza vigiado pelos ursos de armadura.
– É mesmo? E o que seu tio estava fazendo por lá?
– Explorando. Mas pelo jeito que o homem estava falando, acho que meu tio não
está do mesmo lado dos Papões. Acho que estavam felizes por ele estar preso.
– Bom, ele não vai conseguir fugir se os ursos de armadura estiverem vigiando.
São como mercenários, sabe o que isso quer dizer? Vendem sua força para quem
pagar. Têm mãos como os homens, e há muito tempo aprenderam o segredo de
trabalhar o ferro, principalmente o ferro meteórico, e fazem grandes folhas e chapas
para se cobrirem. Há séculos eles atacam os escraelingues. São assassinos ferozes,
absolutamente impiedosos. Mas respeitam a palavra dada. Quem faz um acordo com
um panserbjorne pode confiar.
Lyra pensou nesses horrores com temor.
– Mamãe não gosta de ouvir falar no Norte –Tony acrescentou depois de alguns
minutos. – por causa do que pode ter acontecido com o Billy. Sabemos que eles
levaram o Billy para o Norte, entende?
– Como é que sabem disso?
– Pegamos um dos Papões e o obrigamos a falar. Foi assim que soubemos um
pouco do que eles fazem. Aqueles dois ontem à noite não eram Papões; eram
desajeitados demais. Se fossem Papões, a gente ia pegar eles vivos. Sabe, nós, o
povo gípcio, nós fomos os mais atingidos por esses Papões, e estamos nos juntando
para resolver o que vamos fazer. Era o que a gente estava fazendo naquele porto,
abastecendo, porque vamos fazer uma grande reunião nos Pântanos, o que a gente
chama de Encontro. E o que eu acho é que vamos mandar um grupo de resgate,
depois que ouvirmos o que os outros gípcios sabem, depois que juntarmos nossos
conhecimentos. É o que eu faria, se fosse o John Faa.
– Quem é John Faa?
– O rei dos gípcios.
– E vocês vão mesmo salvar as crianças? E quanto ao Roger?
– Quem é Roger?
– O ajudante da Cozinha da Faculdade Jordan. Ele foi levado no mesmo dia que o
Billy, na véspera de eu vir embora com a Sra. Coulter. Aposto que se eu fosse presa
ele ia me salvar. Se vocês vão salvar o Billy, eu quero ir também e salvar o Roger.
E o tio Asriel também, ela pensou, mas não mencionou isso.

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