sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Inscrições abertas para Staff

Oi gente, hoje vim aqui para far que as inscrições para ser parte da staff se abriram!
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Por ora é só isso. 
xx


sábado, 18 de outubro de 2014

Dica #1 - Como Começar Uma Fanfic.


Oi gente, tudo bom? Todo sábado, eu vou postar uma dica importante para escrever fanfics, como esse é o primeiro vou ajudá-los a começar a escrever uma fanfic, para quem não têm a menor ideia de como dar início a ela, então vamos lá.



Trilogia Fronteiras do Universo




A trilogia Fronteiras do Universo narra a história de duas crianças ao embarcarem em uma aventura fantástica por universos paralelos.




A Faca Sutil (Em Breve)

A Luneta Âmbar (Em Breve)

A Bússola de Ouro

Sinopse: No primeiro volume, "A Bússola Dourada", Lyra enfrenta uma arriscada jornada ao extremo Norte para salvar Roger, seu melhor amigo, e outras crianças de terríveis experiências científicas que as separam de seus daemons.


Primeira Parte - Oxford

1. A Garrafa de Tokay
2. A Imagem do Norte
3. A Jordan de Lyra
4. O Aletômetro
5. A Festa
6. As Tarrafas
7. John Faa
8. Frustração
9. Os Espiões

Segunda Parte - Bolvangar

10. O Cônsul e o Urso
11. A Armadura
12. O Menino Perdido
13. Esgrima
14. As Luzes de Bolvangar
15. Os Daemons nas Caixas de Vidro
16. A Guilhotina Prateada
17. As Bruxas

Terceira Parte - Svalbard

18. Gelo e Neblina
19. O Cativeiro
20. A Outrance
21. As Boas-Vindas de Lorde Asriel
22. A Traição
23. A Ponte para as Estrelas







23- A Ponte Para As Estrelas

QUANDO O urso desapareceu de vista, Lyra sentiu que uma grande fraqueza
a dominava, e às cegas tateou em busca de Pantalaimon. – Ah, meu querido Pan,
não posso continuar! Estou tão apavorada, tão cansada, viajei tanto, estou
morrendo de medo! Queria que outra pessoa estivesse no meu lugar, eu juro!
O daemon encostou-se ao pescoço dela, morno e reconfortante.
– Não sei o que fazer- Lyra soluçou. – É demais para nós, Pan, nós não
vamos conseguir...
Ela agarrou-se a ele, ninando-o e deixando os soluços ecoarem pela neve.
Pensava: mesmo se a... a Sra. Coulter chegasse primeiro, isto não ia salvar
Roger. Ela levaria o menino para Bolvangar ou coisa pior, e me mataria por
Vingança...
– Por que eles fazem essas coisas, Pan? Será que todos eles odeiam tanto assim
as crianças, aponto de querer fazer isso? Por quê?
Mas Pantalaimon não sabia responder; tudo que podia fazer era apertá-la com
força. Aos poucos, enquanto a tempestade de medo se acalmava, ela recuperou a
confiança em si. Afinal, ela era Lyra! Podia estar com frio e com medo, mas era Lyra!
– Eu queria... – começou a dizer, mas parou; querer não levava a nada.
Com um último suspiro trêmulo, ela estava pronta para seguir em frente.
A esta altura, a lua morrera, e o céu ao sul estava profundamente escuro, embora
milhões de estrelas ali brilhassem como diamantes no veludo. A Aurora Boreal, porém,
brilhava 100 vezes mais que elas. Lyra nunca a tinha visto tão brilhante e espetacular; a
cada movimento, novos milagres de luz dançavam pelo céu. E por trás da inconstante
cortina de luz, aquele outro mundo, a cidade iluminada pelo sol, mostrava-se, clara e
sólida.Quanto mais Lyra e Pantalaimon subiam, mais a terra árida estendia-se abaixo
deles. Ao norte estava o mar congelado, com rachaduras onde duas placas de gelo
tinham colidido, mas, exceto isto, plano e infinito, chegando até o próprio Pólo e indo
além dele, sem características, sem vida, sem cor, nu como Lyra jamais poderia ter
imaginado. Para o leste e para o oeste, erguiam-se mais montanhas de picos altos e
pontudos, as escarpas cobertas de neve e cortadas pelo vento em lâminas aguçadas
como cimitarras. Para o sul, estava o caminho por onde tinham vindo, e Lyra olhou para
trás com emoção, esperando ver seu querido amigo Iorec Byrnison e sua tropa; mas
nada se movia na planície. Ela nem sequer podia ter certeza de estar enxergando os
restos do zepelim ou a neve manchada de vermelho em volta dos cadáveres dos
guerreiros.
Pantalaimon levantou vôo e voltou para o pulso dela em forma de coruja.
– Estão logo atrás do pico! – disse. – Lorde Asriel preparou todos os seus
instrumentos, e Roger não consegue fugir...
Enquanto ele falava, a Aurora Boreal piscou e perdeu intensidade, como uma
lâmpada anbárica no fim do tempo de uso, e então desapareceu de vez. Na penumbra,
porém, Lyra sentia a presença do Pó, pois o ar parecia cheio de más intenções, como
formas de pensamentos ainda por nascer.
Na escuridão que a envolvia, ela ouviu uma voz infantil:
– Lyra! Lyra!
– Estou indo! – ela gritou de volta, e cambaleou para cima, caindo, levantando,
lutando, esforçando-se, já no final de suas forças, porém avançando sem parar através
da neve que brilhava fantasmagoricamente.
– Lyra! Lyra!
– Estou quase chegando – ela ofegou. – Quase chegando, Roger!
Pantalaimon, em sua aflição, transformava-se rapidamente: leão, arminho, águia,
gato-do-mato, salamandra, coruja, leopardo, todas as formas que ele já havia tomado,
um caleidoscópio de formas em meio ao Pó...
– Lyra!
Ela chegou ao topo e viu o que estava acontecendo.
A uns 50 metros de distância, Lorde Asriel estava torcendo juntos dois fios que
levavam ao trenó tombado de lado, sobre o qual havia uma fila de baterias, vidros e
peças de aparelhagem, já cobertos de cristais de gelo. Ele vestia peles grossas e tinha
o rosto iluminado pela chama de uma lamparina de nafta. Deitada como a Esfinge ao
lado dele estava seu daemon, movimentando a cauda preguiçosamente sobre a neve, a
linda pelagem brilhando.
Em sua boca estava o daemon de Roger.
A pequena criatura lutava, arranhava, mordia, passando de pássaro a cachorro,
depois gato, rato, outra vez pássaro, incessantemente chamando por Roger, a poucos
metros de distância, também lutando, tentando dominar o pânico e a dor e gritando de
sofrimento e de frio. Ele chamava o nome de seu daemon e chamava Lyra; ele correu
para Lorde Asriel e agarrou-lhe o braço, mas Lorde Asriel jogou-o longe. Ele tornou a
tentar, chorando e implorando, mas Lorde Asriel jogou-o no chão outra vez.
Estavam na beira de um abismo; atrás deles havia apenas as trevas infinitas.
Estavam mais de 300 metros acima do mar congelado.
Lyra enxergou tudo isso à luz das estrelas; mas então, enquanto Lorde Asriel
ligava seus fios, a Aurora Boreal iluminou-se inteira outra vez, como a centelha de
poder mortal que brinca entre dois terminais, só que neste caso um deles tinha mais de
mil quilômetros de altura e 30 mil de comprimento. A Aurora Boreal mergulhava e
crescia, ondulando, cintilando, uma gloriosa catarata de luz.
E era controlada por ele...
Ou então ele estava recebendo energia dela, pois havia um fio que saía de um
imenso carretel no trenó e subia diretamente para o céu. Da escuridão surgiu um corvo,
que Lyra identificou como o daemon de uma bruxa. Havia uma bruxa ajudando Lorde
Asriel, e ela levara o fio para as alturas.
E a Aurora brilhava outra vez.
Ele estava quase pronto. Virou-se para Roger e chamou-o, e Roger obedeceu,
sacudindo a cabeça, implorando, chorando, mas sem nada poder fazer.
–Não! Fuja, correndo! – Lyra gritou, lançando-se encosta abaixo. Pantalaimon
saltou sobre a pantera branca e arrancou o daemon de Roger dos dentes dela. O
daemon-pantera saltou sobre ele, e Pantalaimon soltou o outro daemon; ambos,
mudando de forma sem parar, viraram-se e deram combate ao enorme animal.
Ele tentava atingi-los com suas garras afiadas, e seu rugido encobriu até mesmo
os gritos de Lyra. As duas crianças também lutavam contra ele ou contra as formas no
ar, aquelas más intenções que desciam pelos jorros de Pó...
E lá no alto a Aurora Boreal oscilava, e seu brilho iluminava ora um prédio, ora um
lago, ora uma fila de palmeiras, tudo tão perto que dava a impressão de que se podia
passar caminhando de um mundo ao outro.
Lyra deu um pulo e agarrou a mão de Roger, puxando-o com força. Os dois se
desvencilharam de Lorde Asriel e correram de mãos dadas, mas Roger caiu e
contorceu- se, pois a pantera tornara a capturar seu daemon; Lyra conhecia aquela dor
e tentou parar...
Mas não conseguiram parar.
O rochedo estava deslizando debaixo deles.
Uma plataforma de neve, deslizando inexoravelmente para o abismo...
Para o mar congelado, centenas de metros abaixo deles...
– LYRA!
Coração pulsando... Mãos que a agarravam com força...
E lá no alto a maior maravilha: o domo celeste, cravejado de estrelas, profundo,
de repente foi perfurado como se por uma espada.
Um jato de luz, um jato de pura energia liberada como uma flecha lançada por um
arco imenso, disparou para cima. As cortinas de luz e cor que eram a Aurora Boreal
rasgaram-se com um som forte que chegou às extremidades do universo; havia terra
seca no céu...
A luz do sol!
A luz do sol brilhando na pelagem de um macaco dourado...
Pois a descida da prateleira de neve havia cessado; talvez uma protuberância na
encosta tivesse interrompido aqueda. Lyra avistou, na neve remexida do topo da
montanha, o macaco dourado surgir do ar ao lado da pantera e viu os dois daemons se
eriçarem, fortes e atentos. O macaco tinha a cauda ereta, e a pantera balançava a
dela de um lado para outro. Então o macaco estendeu a pata hesitantemente, a
pantera baixou a cabeça em gracioso reconhecimento, os dois se tocaram...
E quando Lyra desviou o olhar deles, viu a própria Sra.Coulter presa nos braços
de Lorde Asriel. A luz brincava em volta deles como raios e centelhas de intensa
energia anbárica. Lyra, impotente, só podia imaginar o que tinha acontecido: a
Sra.Coulter havia conseguido atravessar o abismo e chegar até ali...
Seu pai e sua mãe, juntos!
E num abraço apaixonado: uma coisa inimaginável.
Ela arregalou os olhos. O corpo de Roger estava morto em seus braços, imóvel,
quieto, descansando. Ela ouviu os pais conversando. A mãe disse:
– Eles nunca vão permitir...
– Permitir? – o pai repetiu. – Nós já passamos da fase de pedir permissão como
se fôssemos crianças. Eu tornei possível que qualquer um atravesse se quiser.
– Eles vão proibir! Vão vedar a passagem e excomungar quem tentar!
– Vai ter gente demais querendo passar. Eles não vão conseguir impedir. Isso vai
significar o fim da Igreja, Marisa, o fim do Magisterium, o fim de todos esses séculos
de trevas! Olhe para aquela luz lá no alto: é o sol de outro mundo! Sinta o calor dele na
sua pele, agora!
– Eles são mais poderosos que tudo, Asriel. Você não conhece...
– Eu não conheço? Ninguém no mundo conhece mais do que eu o poder da Igreja!
Mas ela não é suficientemente poderosa para isso. De qualquer maneira, o Pó vai
mudar tudo.
Agora é impossível impedir.
– Era isso que você queria? Sufocar todos nós, matar todos nós com pecado e
trevas?
– Eu queria me libertar, Marisa! E consegui. Olhe, veja as palmeiras balançando
na praia! Está sentindo o vento? É o vento de um outro mundo! Sinta nos cabelos, no
rosto...
Lorde Asriel afastou o capuz do rosto da Sra. Coulter e virou a cabeça dela para
o céu, deslizando os dedos pelos cabelos dela. Lyra observava sem ousar mover um
só músculo.
A mulher agarrou-se a Lorde Asriel como se estivesse tonta e sacudiu a cabeça,
aflita.
– Não, não... Eles estão vindo, Asriel. Sabem para onde eu vinha...
– Então venha comigo para fora deste mundo!
– Não tenho coragem...
– Você? Logo você, não tem coragem? Até sua filha viria. Sua filha teria coragem
para qualquer coisa, envergonhando a mãe dela.
– Então vá com ela, e boa viagem. Ela é mais sua do que minha, Asriel.
– Não. Foi você quem a levou; tentou moldá-la. Naquela época, você a queria.
– Ela era rústica demais, teimosa demais. Deixei passar tempo demais... Mas
onde é que ela está? Segui as pegadas dela até aqui...
– Ainda quer ficar com ela? Duas vezes tentou prendê-la e duas vezes ela fugiu.
Se eu fosse ela, ia sair correndo para não lhe dar uma terceira oportunidade.
As mãos dele, ainda segurando a cabeça dela, de repente ficaram tensas e
puxaram-na para ele num beijo apaixonado. Para Lyra aquilo parecia mais crueldade do
que amor.
Olhando para os daemons dos dois, viu uma cena estranha: a pantera tensa,
agachada, com as garras sobre a carne do macaco dourado, e o macaco relaxado,
feliz, cambaleando na neve.
A Sra. Coulter desvencilhou-se do beijo e disse:
– Não, Asriel, meu lugar é neste mundo, não no outro...
– Venha comigo! – ele disse, em tom urgente e autoritário. – Venha trabalhar
comigo!
– Você e eu não podemos trabalhar juntos.
– Não? Você e eu podemos desmontar o universo e tornar a montar, Marisa!
Podemos encontrar a fonte do Pó e destruí-la para sempre! E você gostaria de fazer
parte dessa grande obra, não minta. Pode mentir sobre todo o resto: sobre o Conselho
de Oblação, sobre os seus amantes... Sim, eu sei de Boreal, e não me importo. Pode
mentir sobre a Igreja, pode até mentir sobre a menina, mas não minta sobre o que
realmente deseja...
E suas bocas novamente se uniram com um desejo avassalador. Seus daemons
brincavam violentamente; a pantera deitou-se de costas, e o macaco passou as garras
na pele macia do pescoço dela, e ela ronronou de prazer.
– Se eu não for, você vai tentar me destruir- disse a Sra.Coulter, desvencilhandose.
– Por que eu iria querer destruir você? – perguntou ele, rindo, com a luz do outro
mundo brilhando em volta da cabeça. – Se vier comigo, se trabalhar comigo, vou me
preocupar com você; se ficar aqui, perderei todo o interesse. Não pense que vou me
lembrar de você por um segundo que seja. Agora: ou fique, para fazer suas maldades
neste mundo, ou venha comigo.
A Sra. Coulter hesitou; fechou os olhos e pareceu oscilar, como se fosse
desmaiar; mas recuperou o equilíbrio e abriu os olhos, que mostravam uma tristeza
bela e infinita.
– Não – disse. – Não vou.
Os dois daemons estavam novamente separados. Lorde Asriel baixou a mão e
mergulhou os dedos fortes nos pêlos da pantera; então virou-se e afastou-se sem outra
palavra. O macaco dourado saltou para os braços da Sra. Coulter soltando pequenos
gemidos de tristeza e estendendo os braços para a pantera que se afastava; o rosto
da Sra. Coulter era uma máscara de lágrimas.
Lyra as via brilhar: eram reais.
Então a mãe dela virou-se, sacudida pelo pranto, e afastou-se montanha abaixo,
desaparecendo de vista. Lyra observou-a friamente, depois ergueu os olhos para o
céu. Nunca tinha visto tamanha maravilha.
A cidade ali flutuando, tão vazia e silenciosa, parecia recém-construída, à espera
de ser ocupada, ou adormecida, à espera de ser despertada. O sol daquele mundo
brilhava neste mundo, tornando douradas as mãos de Lyra, derretendo o gelo no capuz
de pele de lobo que Roger estava usando, tornando transparentes as faces pálidas do
menino, brilhando em seus olhos abertos e cegos.
Ela sentiu-se dilacerada de infelicidade. E de raiva, também.
Poderia ter matado o pai; se pudesse arrancar o coração dele, teria feito isso,
por causa do que ele fizera a Roger. E a ela: ele tinha mentido.
Ela ainda estava abraçada ao corpo de Roger. Pantalaimon dizia alguma coisa,
mas ela estava com o cérebro em tumulto e não escutou até que ele enfiou suas garras
de gato-do-mato na mão dela. Ela pestanejou.
– Que foi? – perguntou.
– O Pó! – ele disse.
– Que é que você está dizendo?
– O Pó. Ele vai encontrar e destruir a fonte do Pó, não é?
– Foi o que ele disse.
– E o Conselho de Oblação, a Igreja, Bolvangar, a Sra.Coulter e o resto, todos
querem a mesma coisa, não é?
– É... Ou que ele pare de afetar as pessoas... Por quê?
– Porque se eles acham que o Pó é ruim, ele deve ser bom. Ela não respondeu;
uma onda de excitação crescia em seu peito. Pantalaimon continuou:
– Nós ouvimos todos falarem sobre o Pó, e eles têm muito medo dele, e sabe de
uma coisa? Nós acabamos acreditando neles, mesmo vendo que tudo que faziam era
errado, perverso e cruel... Pensamos que o Pó devia ser ruim, porque eles eram
adultos e diziam isso. Mas e se não for? E se ele for...
Ela o interrompeu:
– É! E se na verdade ele for bom...
Lyra olhou para Pantalaimon e viu seus olhos verdes de gato-do-mato cintilarem.
Sentiu uma vertigem, como se o mundo inteiro estivesse oscilando sob seus pés.
Se o Pó era uma coisa boa... Se fosse algo a ser procurado e valorizado...
– Nós também podemos procurar o Pó! – ela exclamou.
Era o que ele queria ouvir.
– Podemos encontrar antes dele e...
A enormidade daquela missão silenciou-os. Lyra ergueu os olhos para o céu em
chamas. Tinha consciência de como eram pequenos, ela e seu daemon, comparados
com a majestade e a vastidão do universo; e de como sabiam pouco, em comparação
com os profundos mistérios acima deles.
– Nós podemos, sim – Pantalaimon insistiu. – Chegamos até aqui, não foi?
Podemos conseguir.
– Nós estaremos sozinhos. Iorek Byrnison não vai estar lá para nos ajudar. Nem
Farder Coram, nem Serafina Pekkala, ou Lee Scoresby, ninguém.
– Então só nós. Não importa. De qualquer maneira, não estamos sozinhos como...
Ela sabia que ele estava querendo dizer: " Como Tony Makarios, como aqueles
pobres daemons perdidos em Bolvangar; ainda somos um ser único; nós dois somos
um só."
– E temos o aletômetro – ela completou. – É, acho que temos que fazer isso,
Pan. Vamos subir lá e procurar o Pó, e quando encontrarmos, vamos saber o que
fazer.
O corpo de Roger jazia imóvel nos braços dela. Ela o colocou no chão
carinhosamente.
– E faremos – finalizou.
Ela voltou-se para o outro lado. Atrás deles, ficavam a dor, a morte e o medo; à
frente deles, a incerteza, o perigo e mistérios inimagináveis. Mas eles não estavam
sozinhos.
Assim, Lyra e seu daemon deram as costas ao mundo em que nasceram, virando-se
na direção do sol, e caminharam para o céu.

22- A Traição

Ela despertou com um homem sacudindo-lhe o braço. Então Pantalaimon
acordou com um pulo e rosnou, e ela reconheceu Thorold. Ele segurava uma
lamparina a nafta na mão trêmula.
– Senhorita, senhorita, levante-se depressa! Ele está quase delirando, desde
que a senhorita foi dormir. Nunca vi meu amo tão descontrolado. Arrumou muitos
instrumentos e várias baterias num trenó, atrelou os cachorros e partiu. Mas levou
o menino, senhorita!
– Roger? Ele levou o Roger?
– Ele me disse para acordar e vestir o menino, e nem pensei em discutir,
nunca fiz isso. O menino ficou perguntando pela senhorita, mas Lorde Asriel queria
ele sozinho. Sabe, quando a senhorita chegou? Quando ele viu quem era, não queria
acreditar, e ficou mandando a senhorita ir embora?
A cabeça de Lyra estava tão cheia de pensamentos e temores que ela mal
conseguia pensar.
– Sei! Sei! – afirmou.
– Era porque ele precisava de uma criança para terminar a experiência, senhorita!
E Lorde Asriel tem um jeitinho todo especial de conseguir o que quer; é só pedir e...
Agora a cabeça de Lyra estava cheia de trovões, como se ela estivesse tentando
evitar que certa informação chegasse ao seu consciente.
Tinha saído da cama e ia vestir suas roupas quando caiu no chão de repente. Um
agudo grito de desespero envolveu-a. O grito saíra dela, mas era maior do que ela; era
como se o desespero é que estivesse gritando. Pois ela havia se lembrado das
palavras dele: a energia que une o corpo ao daemon é imensamente poderosa; e para
servir de ponte entre os dois mundos era preciso uma descarga de energia
fenomenal...
Ela acabava de perceber o que fizera.
Tinha lutado para chegar até ali para trazer algo a Lorde Asriel, pensando saber o
que ele queria; e não era o aletômetro.
Tudo que ele queria era uma criança.
E ela tinha trazido Roger para ele!
Por isto ele tinha gritado quando viu Lyra: "Não mandei buscá-la!"; ele mandara
buscar uma criança, e o destino lhe trouxera sua própria filha – era o que ele havia
pensado, até ver Roger.
Ah, que angústia terrível! Ela pensava que estava salvando Roger e o tempo todo
estava trabalhando para trair o amigo...
Lyra estremecia, aos soluços, num frenesi de emoção. Aquilo não podia ser
verdade!
Thorold tentou acalmá-la, mas não sabia o motivo para tanto sofrimento, e tudo
que podia fazer era dar-lhe tapinhas nervosos no ombro.
– Iorek... – ela soluçou, afastando o criado. – Onde está Iorek Byrnison? O urso?
Ainda está lá fora?
O velho deu de ombros, sem saber responder. – Me ajude! – ela pediu, tremendo
de fraqueza e medo. – Traga meus agasalhos. Tenho que ir. Agora! Rápido!
Ele pousou a lamparina e fez o que ela pedia. Quando dava ordens naquele tom
imperioso, ela ficava muito parecida com o pai, embora tivesse o rosto molhado de
lágrimas e os lábios trêmulos. Enquanto Pantalaimon andava de um lado para outro
sacudindo a cauda com força, a pelagem quase faiscando, Thorold correu para trazer
as peles dela, rígidas e fedorentas, e ajudar Lyra a agasalhar-se. Assim que todos os
botões estavam fechados, ela correu para a porta, e sentiu o frio atingir sua garganta
como uma espada e congelar as lágrimas em seu rosto.
–Iorek! – ela se pôs a gritar. – Iorek Byrnison! Venha, preciso de você!
Houve um vulcão de neve, um ruído de metal, e o urso apareceu a seu lado;
estivera dormindo tranqüilamente sob a neve que caía. Na luz da lamparina que Thorold
segurava junto à janela, Lyra viu a cabeça comprida e sem rosto, as frestas escuras
dos olhos, o brilho de pêlos brancos sob o metal preto-avermelhado, e teve vontade de
abraçá-lo, procurando consolo no elmo de ferro, na pele de pontas de gelo.
– Que foi? – ele perguntou.
– Temos que alcançar Lorde Asriel. Ele levou o Roger e vai... não consigo nem
pensar nisso... Ah, Iorek, eu lhe imploro, vá depressa, meu querido!
– Então venha- ele retrucou.
Lyra saltou para as costas do urso. Não havia necessidade de perguntar o
caminho; o rastro do trenó levava para a planície, e Iorek lançou-se no encalço dele.
Seu movimento fazia agora parte de Lyra, de modo que equilibrar-se havia se tornado
uma coisa automática para ela. Ele corria mais depressa do que nunca pelo espesso
manto de neve sobre o solo rochoso, e as placas da sua armadura roçavam umas nas
outras num ritmo regular.
Atrás deles, os outros ursos vinham mais devagar, puxando o lançador de fogo. O
caminho estava claro, pois a lua estava alta, e sua luz, derramando-se sobre o mundo
nevado, era tão clara como tinha sido no balão: um mundo de prata brilhante e negrume
total. O rastro do trenó de Lorde Asriel ia direto para uma serra de picos pontiagudos,
formas aguçadas e estranhas que sobressaíam num céu tão negro quanto o veludo que
embrulhava o aletômetro. Não havia sinal do trenó – ou havia um levíssimo movimento
na encosta do pico mais alto? Lyra tentou enxergar, forçando os olhos, e Pantalaimon
voou o mais alto que pôde para espiar com sua visão clara de coruja.
– É Lorde Asriel, sim, ele está chicoteando furiosamente os cães, e tem uma
criança com ele...
Lyra sentiu Iorek Byrnison diminuir a velocidade; alguma coisa tinha chamado sua
atenção. Ele erguia a cabeça, virando-a para a esquerda e para a direita.
– Que é? – ela quis saber.
Ele não disse. Estava escutando com atenção, mas ela nada conseguia ouvir.
Mas então ouviu alguma coisa: um ruído misterioso e muito distante de coisa roçando e
estalando. Era um som que ela já ouvira: o som da Aurora Boreal. Um véu de brilho
tinha caído do nada e pendia cintilante no céu austral. Todos aqueles bilhões e trilhões
de partículas carregadas invisíveis, e possivelmente também – ela pensou – de Pó,
formavam uma radiância descendo da atmosfera superior. Nessa noite, a Aurora Boreal
ia ser bem mais brilhante e extraordinária do que qualquer outra que Lyra já vira, como
se soubesse do drama que se desenrolava lá embaixo e quisesse iluminá-lo com os
mais impressionantes efeitos especiais. Mas nenhum dos ursos estava olhando para
cima: tinham a atenção voltada para a terra. Então não havia sido a Aurora que atraíra
a atenção de Iorek! O urso agora estava imóvel, e Lyra escorregou das costas dele,
sabendo que ele precisava de liberdade de movimentos para poder se orientar. Alguma
coisa o preocupava.
Lyra olhou em volta e para trás, para a vastidão plana que levava à casa de Lorde
Asriel, olhou para as montanhas que tinham atravessado mais cedo, e nada viu. A
Aurora Boreal ficou mais intensa; os primeiros véus tremularam e deslizaram para um
lado, e cortinas irregulares dobraram-se e desdobraram-se acima deles, aumentando
em tamanho e brilho a cada minuto; espirais e arabescos retorciam-se de um horizonte
a outro, e tocavam o próprio zênite com arcos de luz. Ela escutava com mais clareza
do que nunca o portentoso canto sibilado de vastas forças intangíveis.
– As bruxas! – exclamou uma voz de urso.
Lyra virou-se, com alegria e alívio, mas um focinho pesado empurrou-a pelas
costas e jogou-a no chão; sem fôlego para levantar-se, a menina ficou caída, ofegante
e trêmula, pois no lugar onde ela estivera de pé havia agora a pena verde de uma
flecha; a ponta e o cabo estavam enterrados na neve.
"Impossível!", ela pensou, mas era verdade, pois outra flecha bateu ruidosamente
na armadura de Iorek, que estava de pé acima dela.
Não eram as bruxas de Serafina Pekkala; eram de outro clã.
Ficaram voando em círculos, mais de uma dúzia delas, dando rasantes para atirar
uma flecha e tornando a subir depressa, e Lyra praguejou, dizendo todos os palavrões
que sabia. Iorek Byrnison deu ordens rápidas. Era evidente que os ursos tinham prática
em lutar contra bruxas, pois no mesmo instante eles se colocaram em posição
defensiva, e as bruxas passaram ao ataque. Elas só conseguiam acertar no alvo se
atirassem de perto, e para não desperdiçar flechas, elas mergulhavam, atiravam a
flecha e no mesmo instante subiam. Mas quando chegavam ao ponto mais baixo do
mergulho, tendo as mãos ocupadas com o arco e a flecha, elas ficavam vulneráveis, e
os ursos saltavam para o alto com as garras estendidas e puxavam as bruxas para o
chão. Várias foram derrubadas assim, e logo liquidadas.
Lyra agachou-se junto a uma rocha, observando. Algumas bruxas atiraram nela,
mas erraram o alvo; e então Lyra, olhando para cima, viu que a maior parte do grupo
se destacava e ia embora.
Se ela ficou aliviada com isso, o alívio não durou mais que uns instantes: da
direção que as bruxas tinham tomado vinham muitas outras, e com elas no céu havia
um grupo de luzes brilhantes; e vindo do outro lado da planície de Svalbard, sob a
radiância da Aurora Boreal, ela ouviu um som que abominava: o pulsar de um motor a
gás. O zepelim estava chegando, trazendo a bordo a Sra. Coulter e sua tropa.
Iorek rosnou uma ordem, e os ursos tomaram outra formação. Lyra ficou
observando enquanto eles preparavam o lançador de fogo. A vanguarda da esquadrilha
de bruxas também viu isto e a saraivada de flechas recomeçou, mas os ursos
confiavam em suas armaduras e trabalharam depressa para montar o aparelho: um
braço comprido que se estendia para o alto em ângulo e uma cuia com um metro de
diâmetro; e um grande tanque de ferro coberto de fumaça e vapor.
Enquanto ela observava, surgiu uma labareda brilhante, e uma equipe de ursos
bem treinados pôs-se em ação. Dois deles baixaram o braço do lançador de fogo,
outro jogou pás de fogo dentro da cuia e veio a ordem de disparo; o enxofre flamejante
foi lançado para o céu escuro.
As bruxas estavam tão apinhadas no céu acima deles que três delas caíram no
primeiro tiro, mas logo ficou óbvio que o verdadeiro alvo era o zepelim. O piloto nunca
tinha visto um lançador de fogo, ou então subestimava o poder da arma, pois continuou
voando diretamente para os ursos, sem subir ou desviar-se.
Então ficou claro que eles também tinham uma arma poderosa no zepelim: uma
metralhadora montada no nariz da gôndola. Lyra viu centelhas voando da armadura de
alguns ursos, e viu-os enrodilhar-se para se protegerem, antes de ouvir o ruído das
balas. Ela gritou com medo.
– Eles estão seguros – disse Iorek Byrnison. – Essas balas de brinquedo não
conseguem furar uma armadura.
O lançador de fogo funcionou de novo: desta vez uma massa de enxofre em
chamas foi jogada para o alto e atingiu a gôndola, explodindo numa cascata de brasas.
O zepelim fez uma curva para a esquerda e afastou-se num grande arco antes de
voltar para o grupo de ursos que trabalhavam depressa junto ao lançador de fogo.
Enquanto o zepelim se aproximava, o braço da arma descia; a metralhadora cuspiu
balas, e dois ursos caíram, arrancando um rugido baixo de Iorek Byrnison; quando a
aeronave estava quase acima deles, um urso gritou uma ordem, e o braço do aparelho
foi erguido.
Desta vez, o enxofre foi lançado contra o balão de gás do zepelim. A estrutura
rígida segurava uma cobertura de seda impermeabilizada que continha o hidrogênio, e,
embora ela fosse suficientemente forte para resistir a pequenos golpes, o peso de toda
aquela carga de mineral em chamas foi demais: a seda rasgou-se de um lado a outro e
o enxofre e o hidrogênio encontraram-se, numa catástrofe de chamas.
No mesmo instante, a seda ficou transparente; todo o esqueleto do zepelim ficou
visível, escuro contra o inferno vermelho e amarelo, e flutuou no ar pelo que parecia ser
um tempo impossivelmente longo antes de cair devagar, quase com relutância.
Pequenas figuras, escuras contra a neve e o fogo, saíram dele cambaleando ou
correndo, e as bruxas desceram para ajudar a arrastá-los das chamas. Em menos de
um minuto, o zepelim tinha se tornado uma massa de metais retorcidos, fumaça e
algumas chamas esparsas. Mas os soldados a bordo, e os outros também (embora
Lyra estivesse distante demais para identificar a Sra. Coulter, sabia que ela estava lá),
não perderam tempo; com a ajuda das bruxas, eles arrastaram e armaram a
metralhadora e continuaram o combate em terra firme.
– Vamos – disse Iorek. – Eles vão aguentar muito tempo.
Ele rugiu, e um grupo de ursos destacou-se e atacou o Banco direito dos tártaros.
Lyra sentia a vontade que ele tinha de estar lá também, mas os nervos dela gritavam
para que partissem, e sua mente estava cheia de imagens de Roger e Lorde Asriel; e
Iorek Byrnison sabia, pois deu as costas à luta e começou a subir a montanha,
deixando seus ursos combatendo os tártaros.
Enquanto subiam, Lyra forçava os olhos para enxergar à frente, mas nem mesmo
o olhar de coruja de Pantalaimon conseguia vislumbrar qualquer movimento no Banco
da montanha que eles estavam subindo. Porém as marcas do trenó de Lorde Asriel
estavam claras, e Iorek seguia-as rapidamente, saltando através da neve, fazendo-a
subir atrás de si. O que acontecia atrás deles era exatamente isto: algo que havia
ficado para trás. Lyra sentia que estava deixando o mundo para trás, de tão distante e
decidida que estava, de tão alto que estavam subindo, de tão estranha e misteriosa a
luz que os banhava.
– Iorek, você vai encontrar Lee Scoresby?
– Vivo ou morto, vou encontrar .
– E se vir Serafina Pekkala...
– Eu conto a ela o que você fez.
– Obrigada, Iorek – ela disse.
Por algum tempo, ficaram em silêncio. Lyra sentiu-se cair numa espécie de transe
que não era dormir nem estar acordada, quase um estado de sonho consciente no qual
ela sonhava que estava sendo carregada por ursos para uma cidade nas estrelas.
Ia contar isto a Iorek Byrnison quando ele parou.
– Os rastros continuam em frente, mas eu não posso - disse ele.
Lyra saltou para o chão e parou ao lado dele. Estavam de pé na beira de um
abismo. Era difícil dizer se se tratava de uma fenda no gelo ou uma fissura na rocha,
mas isto não fazia diferença. O que importava era que o precipício mergulhava na
escuridão insondável.
E o rastro do trenó de Lorde Asriel chegava até a borda... e ia em frente, através
de uma ponte de neve compactada.
Era evidente que a ponte tinha sentido o peso do trenó, pois havia nela uma
rachadura junto à outra borda do abismo, e a superfície da ponte perto da rachadura
tinha cedido quase meio metro. Poderia suportar o peso de uma criança, mas nunca o
de um urso de armadura.
E o rastro de Lorde Asriel atravessava aponte e subia a montanha do outro lado.
Se Lyra continuasse, teria que ir sozinha. Ela voltou-se para Iorek Byrnison.
– Tenho que atravessar-declarou. – Obrigada por tudo que fez por mim. Não sei o
que vai acontecer quando eu alcançar Lorde Asriel. Podemos morrer todos, mesmo
que eu não chegue até lá. Mas se eu voltar, virei fazer uma visita para agradecer mais
uma vez, Rei Iorek Byrnison.
Ela colocou a mão na cabeça dele, e ele assentiu delicadamente.
–Adeus, Lyra da Língua Mágica – disse.
Com o coração apertado e dolorido, ela colocou um pé na ponte. A neve estalou
sob seu peso, e Pantalaimon voou para pousar na outra extremidade da ponte e
encorajá-la a prosseguir.
Ela deu um passo após outro, perguntando-se a cada passo se não seria melhor
correr até o outro lado e dar um pulo para a margem ou ir devagar como estava
fazendo, pisando de leve. Na metade do percurso, ela ouviu outro estalido da neve;
perto de seus pés, um pedaço de gelo despencou no abismo, e a ponte cedeu mais
alguns centímetros.
Ela ficou imóvel. Pantalaimon, em forma de leopardo, estava agachado, pronto
para saltar e agarrá-la.
A ponte aguentou. Ela deu outro passo, mais outro, e então sentiu que alguma
coisa cedia sob seus pés e saltou para a borda com toda a força que tinha. Aterrissou
de barriga na neve e no mesmo instante a ponte inteira caía no abismo.
Pantalaimon tinha as garras cravadas nas peles do agasalho da menina.
Depois de um minuto, ela abriu os olhos e rastejou para longe da borda. Já não
havia caminho de volta. Ela ficou de pé e levantou a mão para o urso que a observava.
Iorek Byrnison ergueu-se nas patas traseiras para despedir-se, e então virou-se e
desceu a montanha correndo, para ir ajudar seus súditos na batalha contra a Sra. Coulter e os soldados do zepelim.
Lyra estava sozinha.

21- As Boas-Vindas de Lorde Asriel

Lyra cavalgava um urso jovem e forte, e Roger viajava montado em outro, ao
passo que Iorek caminhava incansavelmente à frente; atrás deles ia um grupo
armado com um lançador de fogo, defendendo a retaguarda. O caminho era longo
e difícil: o interior de Svalbard, montanhoso, com picos irregulares e desfiladeiros
profundos cortados por ravinas e vales de paredes íngremes; e o frio, intenso.
Lyra recordou os trenós velozes e macios dos gípcios a caminho de
Bolvangar; como aquela viagem parecia agora rápida e confortável! O ar aqui era
o mais penetrante e frio que ela já conhecera; ou podia ser que o urso que ela
montava não fosse tão ágil quanto Iorek Byrnison; ou talvez ela estivesse cansada
até a alma. De qualquer maneira, foi uma viagem desesperadamente dura.
Ela pouco sabia sobre para onde estavam indo, ou a que distância ficava; tudo
que sabia era o que o urso ancião Soren Eisarson lhe contara enquanto preparavam o
lançador de fogo.
Ele participara das negociações a respeito das condições do encarceramento de
Lorde Asriel e se lembrava muito bem.
Ele disse que, no início, os ursos de Svalbard consideravam Lorde Asriel igual a
qualquer dos outros políticos, reis ou baderneiros que tinham sido exilados para aquela
ilha distante. Os prisioneiros eram importantes, senão teriam sido mortos por seu
próprio povo; podiam ser valiosos para os ursos um dia, se seus destinos políticos
mudassem e eles voltassem a governar suas terras; portanto, podia valer a pena não
tratá-los com crueldade ou desrespeito.
De modo que Lorde Asriel tinha achado as condições em Svalbard nem melhores,
nem piores do que as de centenas de outros exilados antes dele. Mas certas coisas
faziam seus carcereiros terem mais medo dele do que dos outros prisioneiros; havia um
ar de mistério e de perigo espiritual que envolvia qualquer coisa relacionada ao Pó; eles
tinham visto o pânico evidente daqueles que haviam levado Lorde Asriel até lá; e havia
as comunicações particulares entre a Sra. Coulter e Iofur Raknison.
Além disso, os ursos nunca tinham visto alguém com a natureza orgulhosa e
autoritária de Lorde Asriel. Ele dominava até mesmo Iofur Raknison, discutindo com
firmeza e eloqüência, e convenceu o urso-rei a permitir que ele próprio escolhesse o
lugar onde ia morar.
O primeiro que lhe deram era baixo demais; ele disse que precisava de um lugar
no alto, acima da fumaça e da poluição das minas de fogo e dos ferreiros. Deu aos
ursos uma planta do alojamento que desejava e lhes disse onde devia ser construído;
ele os subornou com ouro e lisonjeou e intimidou Iofur Raknison; de boa vontade,
achando graça, os ursos puseram-se a trabalhar .Em pouco tempo, uma casa foi
construída numa ponta de terra virada para o norte: uma construção ampla e sólida,
com lareiras que queimavam grandes blocos de carvão retirados da terra e carregados
por ursos, e com grandes janelas de vidro de verdade. Ali ele vivia, um prisioneiro
agindo como um rei.
E então dedicou-se a reunir o material para um laboratório.
Com furiosa concentração, mandou buscar livros, instrumentos, agentes químicos,
todo tipo de ferramentas e aparelhos. E de um jeito ou de outro, recebeu tudo que
pedira – uma parte abertamente, outra contrabandeada pelos visitantes que ele insistia
ter direito de receber. Por terra, mar e ar, Lorde Asriel reuniu seu material, e aos seis
meses de prisão já possuía todo o equipamento que queria.
E então começou a trabalhar, pensando, planejando e calculando, esperando a
única coisa que precisava para completar o trabalho que tanto assustava o Conselho de
Oblação. E essa coisa estava cada vez mais próxima.
A primeira visão que Lyra teve da prisão de seu pai veio quando Iorek Byrnison
fez alto no sopé de um rochedo para que as crianças esticassem as pernas, que
estavam ficando perigosamente frias e rígidas.
– Olhe lá para cima – ele disse.
Um aclive coberto de rochas e gelo de uma antiga avalanche, onde uma trilha
tinha sido trabalhosamente aberta, levava ao topo de um penhasco destacado em
silhueta contra o céu. Não havia Aurora, mas as estrelas brilhavam. O penhasco
mostrava-se negro e hostil, mas no topo via-se um prédio espaçoso, de onde jorrava
luz em todas as direções – não o brilho enfumaçado e inconstante das lamparinas a
gordura de peixe, nem a luz branca e chocante dos holofotes anbáricos, mas a luz
cálida da nafta.
As janelas de onde a luz emergia também mostravam o formidável poder de
Lorde Asriel. O vidro era um material caro, que em grandes extensões ajudava a
manter o calor nessas regiões inóspitas; assim, esse material evidenciava dinheiro e
influência, muito mais do que o palácio vulgar de Iofur Raknison.
Montaram nos ursos pela última vez, e Iorek guiou-os encosta acima até a casa.
Havia um pátio coberto de neve, rodeado por um muro baixo; quando Iorek empurrou o
portão, ouviu-se uma campainha tocar em algum lugar dentro da casa.
Lyra desceu do urso. Mal conseguia ficar de pé. Ajudou Roger a desmontar
também e, um apoiando o outro, os dois rumaram para a porta, atravessando a neve
que chegava até seus quadris.
Ah, como lá dentro devia estar quentinho! Ah, como ia ser bom descansar em
paz!
Ela estendeu a mão para a corda da sineta, mas a porta se abriu antes que
pudesse pegá-la. Havia um pequeno vestíbulo mal iluminado, que servia para manter o
ar quente dentro de casa, e parado sob a lamparina estava uma pessoa que ela
reconheceu: Thorold, o criado de Lorde Asriel, com seu daemon-pinscher Anfang.
Com um gesto cansado, Lyra empurrou o capuz para trás.
– Quem... – Thorold começou, mas logo a reconheceu, e continuou: – Não é
Lyra? A pequena Lyra? Estou sonhando?
Ele estendeu a mão para trás para abrir a porta interna.
Um salão com um fogo de carvão ardendo numa plataforma de pedra, a cálida luz
de nafta brilhando nos tapetes, nas poltronas de couro, na madeira encerada... Lyra
não via isto desde que deixara a Faculdade Jordan, e sentiu a garganta apertada.
A pantera branca, daemon de Lorde Asriel, rosnou.
Ali estava o pai de Lyra, seu rosto moreno e forte, a princípio intenso, triunfante e
ansioso. E então a cor desapareceu; ele arregalou os olhos, horrorizado, ao
reconhecer a filha.
– Não! Não!
Cambaleou para trás e agarrou-se à prateleira sobre a lareira.
Lyra não conseguia se mover.
– Saia! – Lorde Asriel gritou. – Dê meia-volta e saia, vá embora! Não mandei
buscá-la!
Ela não conseguia falar. Por duas vezes abriu a boca e então conseguiu dizer:
– Não, não, eu vim porque...
Ele parecia apavorado; não parava de sacudir a cabeça e ergueu as mãos como
se para afastá-la. Ela não conseguia acreditar naquilo.
Deu um passo à frente para tranqüilizá-lo, e Roger veio ficar ao seu lado, ansioso.
Os seus daemons saíram voejando, e um momento depois Lorde Asriel passou a mão
pela testa e controlou-se um pouco. A cor começou a voltar ao seu rosto enquanto ele
contemplava as duas crianças.
– Lyra – disse. – É mesmo Lyra?
–Sou, sim, tio Asriel – ela respondeu, achando que aquele não era o momento
para falar de seu verdadeiro parentesco. – Vim lhe trazer o aletômetro, da parte do
Reitor da Jordan.
– Ah, sim, naturalmente- fez ele. – Quem é este aí?
– É Roger Parslow – ela explicou. – É ajudante na Cozinha da Faculdade Jordan.
Mas...–
Como foi que chegou aqui?
– Eu estava contando, Iorek Byrnison está lá fora, ele nos trouxe aqui. Veio
comigo desde Trollesund, e nós enganamos Iofur...
– Quem é Iorek Byrnison?
– Um urso de armadura. Ele nos trouxe aqui.
– Thorold! – ele chamou. – Prepare um banho para esses dois e alguma comida.
Depois eles vão precisar dormir. As roupas deles estão imundas; arranje alguma coisa
para eles usarem. Faça isso agora, enquanto eu converso com esse urso.
Lyra sentiu a cabeça rodar. Talvez fosse o calor, talvez alívio.
Ela observou o criado fazer uma mesura e sair do salão, e Lorde Asriel sair para
o vestíbulo e fechar a porta atrás de si, e então ela se deixou cair na poltrona mais
próxima.
Parecia que, no instante seguinte, Thorold estava falando com ela.
– Venha comigo, senhorita.
Ela forçou-se a levantar e foi com Roger para um banheiro aquecido, onde toalhas
macias estavam penduradas num varal aquecido e uma banheira de água quente
soltava vapor à luz de nafta.
– Vá você primeiro – disse Lyra. – Vou me sentar lá fora para conversarmos.
Então Roger, fazendo careta por causa da água quente, entrou na banheira e
tomou banho. Eles tinham nadado sem roupa muitas vezes, brincando no Ísis ou no
Cherwell com outras crianças, mas agora era diferente.
– Estou com medo do seu tio – disse Roger através da porta aberta. – Quer
dizer, do seu pai.
– É melhor continuar chamando ele de meu tio. Eu também tenho medo dele, às
vezes.–
Quando a gente entrou, ele não me viu. Só viu você. E ficou apavorado, até me
ver. Então se acalmou de repente.
– Ele ficou chocado, só isso – disse Lyra. –Qualquer pessoa ficaria, vendo
alguém que não esperava ver. A última vez que ele me viu foi depois daquele caso da
Sala Privativa. Deve ter sido mesmo um choque.
– Não, foi mais que isso – Roger insistiu. – Ele estava olhando para mim como um
lobo ou coisa assim.
– Você está imaginando coisas.
– Não estou. Tenho mais medo dele do que tinha da Sra.Coulter, a verdade é
esta.
Enquanto ele jogava água em cima do corpo, Lyra pegou o aletômetro.
– Quer que eu pergunte ao leitor de símbolos sobre isso? – perguntou.
– Bom, sei lá. Algumas coisas eu prefiro não saber. Parece que tudo que ouvi
depois que os Papões chegaram em Oxford, tudo foi ruim. Tudo no futuro depois de
cinco minutos tem sido ruim. Como agora, este banho está gostoso, e no futuro daqui a
cinco minutos vai ter uma toalha quentinha. E enquanto eu me enxugo, vou pensar numa
comida gostosa cinco minutos depois, mas só vou até aí. Depois de comer, talvez
dentro de cinco minutos eu possa estar dormindo numa cama confortável. Mas ir depois
disso, não sei, Lyra. Nós vimos coisas horríveis, não foi? E ainda vem mais, com
certeza. Então acho melhor não saber o que está no futuro. Prefiro o presente.
– Está certo. As vezes sinto isso também – disse ela em tom cansado.
Assim, embora ficasse com o aletômetro na mão por mais algum tempo, era
apenas como um amuleto; não mexeu nos ponteiros e não percebeu que o ponteiro
grande se mexia. Pantalaimon observava em silêncio.
Depois que ambos tomaram banho e comeram pão com queijo, bebendo vinho
com água quente, o criado Thorold disse:
– O menino deve ir para a cama. Vou-lhe mostrar o caminho. Srta. Lyra, Lorde
Asriel pede que vá ao encontro dele na Biblioteca.
Lyra encontrou Lorde Asriel num aposento com janelas largas que davam para o
mar congelado bem abaixo deles. Havia um fogo de carvão numa ampla lareira e uma
lamparina a nafta com a chama bem baixa, de modo que havia poucos obstáculos entre
os ocupantes da sala e a paisagem escura e estrelada lá fora. Lorde Asriel, reclinado
numa grande poltrona a um lado da lareira, indicou que ela ocupasse a outra poltrona,
de frente para ele.
– Seu amigo Iorek Byrnison está descansando lá fora - informou. – Ele prefere o
frio.
– Ele lhe contou a luta com Iofur Raknison?
– Não com detalhes. Mas entendi que agora ele é o rei de Svalbard. Isso é
verdade?
– Claro que é. Iorek nunca mente.
– Parece que ele se nomeou seu guardião...
– Não. John Faa disse a ele para tomar conta de mim, e ele está obedecendo.
Está seguindo as ordens de John Faa.
– Como é que John Faa entrou nesta história?
– Eu lhe conto se o senhor me contar uma coisa –ela propôs. – O senhor é meu
pai, não é?
– Sou. E daí?
– Daí que devia ter me contado antes. Não devia esconder esse tipo de coisa das
pessoas, porque elas se sentem idiotas quando descobrem, e isso é crueldade. Que
diferença faria se eu soubesse que era sua filha? O senhor podia ter me contado há
muitos anos. Podia ter me contado e pedido para eu guardar segredo, e eu guardaria,
pois mesmo sendo muito criança, eu teria feito isso se o senhor me pedisse. Eu teria
tanto orgulho que nada arrancaria isso de mim, se o senhor me pedisse para guardar
segredo. Mas o senhor não. Contou a outras pessoas, mas não a mim.
– Quem lhe contou?
– John Faa.
– Ele falou da sua mãe?
– Falou, sim.
– Então não resta muita coisa para eu contar. Acho que não quero ser interrogado
e condenado por uma garota insolente. Quero saber o que você viu e fez na sua viagem
para cá.
– Eu lhe trouxe o maldito aletômetro, não trouxe? –Lyra explodiu. Estava quase
chorando. – Cuidei dele desde que saí da Jordan, escondi bem escondido e me
preocupei, passando por tudo que nos aconteceu. E aprendi como é que se usa e
carreguei ele por todo o maldito caminho, quando podia simplesmente entregar ele e
ficar em segurança, e o senhor nem diz obrigado, nem mostra qualquer sinal de estar
feliz em me ver. Não sei porque resolvi fazer isso. Mas fiz, persisti, mesmo no palácio
fedorento de Iofur Raknison, com todos aqueles ursos me cercando, eu persisti,
sozinha, e enganei ele, fazendo-o lutar com Iorek para que eu pudesse vir até aqui por
sua causa... E quando o senhor me viu, quase desmaiou, como se eu fosse alguma
coisa horrível que o senhor nunca mais queria ver. O senhor não é humano, Lorde
Asriel. Não é meu pai. Meu pai não me trataria assim. Os pais amam as filhas, não
amam? O senhor não me ama, e eu não amo o senhor, e pronto. Eu amo Farder
Coram, amo Iorek Byrnison. Amo um urso de armadura mais do que amo o meu pai. E
aposto que Iorek Byrnison me ama mais que o senhor.
– Você mesma me disse que ele está só obedecendo ordens de John Faa. Se vai
ficar sentimental, não vou perder meu tempo conversando com você.
– Então pegue o seu maldito aletômetro, e eu vou voltar com Iorek.
– Para onde?
– Para o palácio. Ele pode lutar contra a Sra. Coulter e o Conselho de Oblação
quando eles aparecerem. Se ele perder, eu também vou morrer, mas não me importo.
Se ele vencer, vamos mandar buscar Lee Scoresby, e eu vou embarcar no balão dele
e...
– Quem é Lee Scoresby?
– Um aeróstata. Ele nos trouxe aqui e então caímos. Pronto, aqui está o
aletômetro. Está em perfeito estado.
Ele não fez menção de pegar o instrumento, de modo que ela o colocou na grade
de bronze que rodeava a frente da lareira.
– Bom, acho que é minha obrigação dizer que a Sra.Coulter está a caminho de
Svalbard e assim que souber o que aconteceu a Iofur Raknison ela virá para cá. Num
zepelim, com muitos soldados, e vão matar nós todos por ordem do Magisterium.
– Não vão nos alcançar- ele disse calmamente.
Estava tão calmo e relaxado que parte da raiva dela se desfez.
– O senhor não tem como saber – ela disse, hesitante.
– Mas sei.
– Então tem outro aletômetro?
– Não preciso de um aletômetro para isso. Agora quero saber da sua viagem
para cá, Lyra. Comece do princípio. Conte-me tudo.
Ela assim fez. Começou na noite em que se escondeu na Sala Privativa, depois
falou no sequestro de Roger pelos Papões e o tempo que passou com a Sra. Coulter,
e tudo que tinha acontecido.
Era uma longa história, e quando terminou, ela disse:
– Só tem uma coisa que eu quero saber, e acho que tenho esse direito, como
tinha o direito de saber quem eu sou de verdade. E como não me contou aquilo, vai me
contar isso como recompensa. Pronto: o que é Pó? E por que todo mundo tem tanto
medo dele?
Ele a encarou como se quisesse adivinhar se ela compreenderia o que ele estava
prestes a dizer. Lyra pensou: ele nunca havia olhado seriamente para ela; até então
tinha sido sempre como um adulto observando as gracinhas de uma criança. Mas
parece que ele achou que ela estava pronta.
– Pó é o que faz o aletômetro funcionar – disse.
– Ah... Achei que fosse mesmo! Que mais? Como foi que descobriram isso?
– De certo modo, a Igreja sempre soube. Durante séculos, eles vêm fazendo
sermões sobre Pó, só que não usam este nome. Mas, há alguns anos, um moscovita
chamado Boris Mikhailovitch Rusakov descobriu um novo tipo de partícula elementar.
Você já ouviu falar em elétrons, fótons, neutrinos e o resto? Receberam o nome de
partículas elementares porque não podem ser divididas: não há nada dentro delas além
delas mesmas. Bem, esse novo tipo de partícula era realmente elementar, mas era
muito difícil de ser medida porque não reagia de modo normal. A coisa mais difícil para
Rusakov foi entender por que a nova partícula parecia juntar-se onde havia seres
humanos, como se fosse atraída por nós. E especialmente por adultos. Pelas crianças
também, mas não tanto, até seus daemons fixarem sua forma. Durante os anos de
puberdade, elas começam a atrair Pó com mais força, e ele pousa nelas como pousa
nos adultos.
Ele parou para respirar, mas logo prosseguiu:
– Ora, todas as descobertas desse tipo, por terem influência nas doutrinas da
Igreja, têm que ser anunciadas através do Magisterium em Gênova. E essa descoberta
de Rusakov era tão improvável e estranha que o Inspetor do Tribunal Consistorial de
Disciplina suspeitou que Rusakov estivesse possuído pelo diabo. Fizeram um exorcismo
no laboratório e interrogaram Rusakov segundo as regras da Inquisição, mas afinal
tiveram que aceitar o fato de que Rusakov não estava mentindo ou tentando enganálos:
o Pó realmente existia. Assim surgiu o problema de decidir o que era isso. E devido
à natureza da Igreja só poderiam ter escolhido uma coisa: o Magisterium decidiu que o
Pó era a evidência física do pecado original. Sabe o que é pecado original? Ela torceu
os lábios. Era como estar de volta à Jordan, sendo sabatinada sobre alguma coisa que
mal lhe tinham ensinado.
– Mais ou menos – respondeu.
– Não sabe, não. Vá até a prateleira atrás da escrivaninha e me traga a Bíblia.
Lyra assim fez e entregou ao pai o grande livro de capa preta.
– Lembra-se da história de Adão e Eva?
– Claro. Ela não devia comer o fruto, mas foi tentada pela serpente e comeu.
– Que foi que aconteceu então?
– Hum... Eles foram expulsos. Deus expulsou os dois do paraíso.
– Deus tinha dito para eles não comerem o fruto, senão eles iam morrer. Lembrese,
eles estavam nus no paraíso, eram como crianças, seus daemons tinham a forma
que desejassem ter. Mas ouça o que aconteceu...
Ele procurou o Capítulo Terceiro do Gênesis e leu:
"E a mulher disse à serpente: 'Nós comemos do fruto das árvores que estão no
paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso Deus mandou que não o
comêssemos, e nem o tocássemos, para que não suceda que morramos.'
"Porém a serpente disse à mulher: 'Vós de nenhum modo morrereis. Pois Deus
sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, abrir-se-ão os vossos olhos, e vossos
daemons assumirão suas formas verdadeiras, e sereis como deuses, conhecendo o
bem e o mal'
" Viu, pois, a mulher que (o fruto da) árvore era bom para comer, e formoso aos
olhos, e uma árvore desejável para revelar a forma verdadeira do daemon de alguém; e
tirou do fruto dela, e comeu; e deu a seu marido, que também comeu.
" E os olhos de ambos se abriram, e eles viram a forma verdadeira de seus
daemons, e falaram com eles.
" Mas quando o homem e a mulher conheceram seus próprios daemons, viram
que uma grande transformação neles se efetuara, pois até aquele momento parecia
que eles eram como todas as criaturas da terra e do céu, e não havia diferença entre
eles.
" E eles enxergaram a diferença, e conheceram o bem e o mal; e envergonharamse,
E coseram folhas de figueira para cobrir sua nudez..."
Ele fechou o livro.
– E foi assim que o pecado chegou ao mundo – disse. - O pecado, a vergonha e
a morte. Ele surgiu no momento em que os daemons de Adão e Eva se tornaram
imutáveis.
– Mas... – Lyra lutou para encontrar as palavras que queria. – Mas isso não é
verdade, é? Não é como química ou engenharia, não é esse tipo de verdade, é? Adão
e Eva nunca existiram, não é? O Catedrático de cassington me disse que era só uma
espécie de conto de fadas.
–A cátedra de cassington tradicionalmente é dada a um livre-pensador; a função
dele é desafiar a fé dos Catedráticos. Naturalmente ele tinha que dizer isso. Mas pense
em Adão e Eva como um número imaginário, como a raiz quadrada de menos um: a
gente nunca vê uma prova concreta de que ele existe, mas quando incluímos esse
número nas nossas equações, podemos calcular todo tipo de coisa que seria
impossível imaginar sem ele. De qualquer maneira, essa história é o que a Igreja vem
ensinando há milhares de anos. E quando Rusakov descobriu o Pó, finalmente havia
uma prova física de que alguma coisa acontecia quando a inocência se transformava
em experiência. Aliás, a Bíblia nos deu também o nome "Pó"; no princípio chamava-se
Partículas de Rusakov, mas logo alguém observou um curioso versículo no final do
Capítulo Terceiro do Gênesis, quando Deus amaldiçoa Adão por ter comido o fruto.
Ele tornou a abrir a Bíblia e mostrou a Lyra. Ela leu:
"Comerás o pão com o suor do teu rosto até que voltes à terra, de que foste
tomado: porque tu és pó, e em pó te hás de tornar... "
Lorde Asriel continuou:
– Os estudiosos da Igreja sempre ficaram confusos com a tradução deste
versículo. Alguns dizem que não deveria ser "ao pó retornarás" mas sim "serás sujeito
ao pó", e outros dizem que o versículo inteiro é uma espécie de trocadilho com as
palavras"terra" e "pó" e que ele significa na verdade que Deus está admitindo que sua
própria natureza é parcialmente pecaminosa. Não há um consenso; não se consegue
chegar a uma conclusão, porque esse texto foi modificado. Mas a palavra servia bem
demais, e é por isso que as partículas ficaram conhecidas como Pó.
– E quanto aos Papões? – Lyra quis saber.
– O Conselho Geral de Oblação.. .A quadrilha da sua mãe. Foi muita esperteza
dela identificar a oportunidade de formar sua própria base de poder, mas ela é uma
mulher esperta, como você já deve ter percebido. É vantajoso para o Magisterium
permitir que floresça todo tipo de diferentes organizações. Podem jogar umas contra as
outras; se uma der certo, podem fingir que a apoiaram o tempo todo, e se ela
fracassar, eles podem fingir que era uma organização clandestina que nunca foi
licenciada. Sabe, sua mãe sempre ambicionou o poder. No princípio, tentou conseguir
poder pela maneira normal, através do casamento, mas isto não funcionou, como você
deve ter ouvido contar. De modo que ela teve que recorrer à Igreja. Naturalmente ela
não podia seguir o caminho que um homem seguiria, ser padre e subir na hierarquia da
Igreja, de modo que teve que fazer uma coisa alternativa: teve que criar sua própria
ordem, seus próprios canais de influência, e trabalhar com isso. Foi uma boa jogada
especializar- se no Pó. Todo mundo tinha medo dele, ninguém sabia o que fazer; e
quando ela se ofereceu para dirigir uma investigação, o Magisterium ficou tão aliviado
que eles a apoiaram com dinheiro e recursos de todo tipo.
– Mas eles estavam cortando... – Lyra não conseguiu dizer o resto; as palavras
ficaram bloqueadas em sua garganta. - O senhor sabe o que estavam fazendo! Por
que a Igreja deixou que fizessem uma coisa como essa?
– Havia um precedente. Já ocorrera uma coisa parecida. Sabe o que significa a
palavra "castração"? Significa remover os órgãos sexuais de um menino para que ele
nunca desenvolva as características de um homem. Um castrato tem a voz fina pelo
resto da vida, e é por isto que a Igreja permitia isso: era útil nos coros da Igreja. Alguns
castrati tornaram-se grandes cantores, artistas maravilhosos. Muitos tornaram- se
apenas meio-homens, balofos e temperamentais. Alguns morreram por causa da
operação. Mas a Igreja não se importou com a idéia de um pequeno corte, entende?
Havia um precedente. E isso seria muito mais higiênico do que os métodos antigos,
quando não existia anestesia nem curativos esterilizados. Agora a operação seria muito
mais suave.
– Não é, não! – Lyra exclamou com ferocidade. –Não é não!
– Não. Claro que não. É por isso que tiveram que se esconder no Extremo Norte,
na distância e na escuridão. E por isso a Igreja ficou tão contente em ter alguém como
a sua mãe tomando conta. Quem iria duvidar de uma mulher tão encantadora, tão bemrelacionada,
tão simpática e educada? Mas por se tratar de uma operação obscura e
clandestina, ela era alguém que o Magisterium poderia negar conhecer, se fosse
necessário.
– Mas de quem foi a idéia de fazer esse corte?
– Foi dela. Ela adivinhou que as duas coisas que acontecem na adolescência
poderiam estar ligadas: a mudança no daemon e o fato de que o Pó começa a pousar.
Talvez, se o daemon fosse separado do corpo, pudéssemos não ser sujeitos ao Pó, ao
pecado original. A questão era se seria possível separar o daemon do corpo sem
matar a pessoa. Mas ela viajou por muitos lugares e viu muitas coisas. Viajou pela
África, por exemplo. Os africanos conseguem criar um escravo chamado zumbi. Ele
não tem vontade própria; trabalha dia e noi te sem fugir e sem reclamar. Parece um
cadáver...
– É uma pessoa sem seu daemon!
– Exatamente. Assim, ela descobriu que era possível separar os dois.
– E... Tony Costa me contou sobre os fantasmas horríveis que existem nas
florestas do Norte. Imagino que devem ser o mesmo tipo de coisa.
– Isso mesmo. De qualquer maneira, o Conselho Geral de Oblação cresceu por
causa de idéias como esta e da obsessão da Igreja com o pecado original.
O daemon de Lorde Asriel vibrou as orelhas, e ele pousou a mão na bela cabeça
do animal.
– Mais uma coisa acontecia quando faziam o corte, porém eles não perceberam –
ele continuou. – A energia que liga o corpo ao daemon é imensamente poderosa;
quando o corte é feito, toda essa energia se dissipa numa fração de segundo. Eles não
perceberam, pois confundiram com choque, ou trauma, ou raiva, e treinaram-se para
não sentir aquilo. De modo que deixaram de ver o que essa energia podia fazer e nunca
pensaram em aproveitá-la...
Lyra não conseguia ficar quieta; levantou-se, caminhou até a janela e ficou
contemplando a escuridão. Eles eram cruéis demais! Por mais que fosse importante
descobrir sobre o pecado original, era crueldade demais o que tinham feito a Tony
Makarios e todos os outros. Nada justificava isso.
– E o que o senhor estava fazendo? – ela perguntou. - Também cortou alguém?
– Estou interessado em coisa completamente diferente. Acho que o Conselho de
Oblação não avança o suficiente; eu quero ir à própria fonte do Pó.
– A fonte? De onde ele vem, então?
– Do outro universo que conseguimos ver através da Aurora Boreal.
Lyra virou-se outra vez para a sala. Seu pai estava recostado na poltrona,
relaxado e poderoso, os olhos tão ferozes quanto os de seu daemon. Ela não o amava,
não conseguia confiar nele, mas não podia deixar de admirá-lo, admirar o luxo
extravagante que ele reunira naquela imensidão desolada, admirar o poder da ambição
dele.
– O que é esse outro universo? – perguntou.
– Um dos incontáveis bilhões de mundos paralelos. As bruxas sabem sobre eles
há séculos, mas os primeiros teólogos a provarem matematicamente a existência deles
foram excomungados, há uns 70 anos ou mais. No entanto, é verdade; não há como
negar. Mas ninguém pensava que um dia seria possível atravessar de um universo para
outro. Isso violaria leis fundamentais, nós achávamos. Bem, estávamos errados.
Aprendemos a enxergar o mundo lá em cima; ora, se a luz consegue atravessar, nós
também conseguimos. E tivemos que aprender a enxergar esse outro mundo, Lyra,
assim como você aprendeu a usar o aletômetro. Ora, esse mundo e todos os outros
universos surgiram como resultado da possibilidade. Veja o exemplo de jogar uma
moeda para o alto: pode cair cara ou coroa, e antes que ela caia não sabemos como
vai cair. Se cair cara, isto significa que a possibilidade de cair coroa está destruída,
mas até aquele momento as duas possibilidades eram iguais.
Ele silenciou por um instante.
– Mas em outro mundo ela cai coroa – prosseguiu. –E quando isso acontece, os
dois mundos se separam. Estou usando o exemplo de uma moeda para tornar a coisa
mais clara. Na verdade, essas destruições de possibilidade acontecem do mesmo
modo no nível das partículas elementares: em dado momento, várias coisas são
possíveis; no momento seguinte, apenas uma acontece e o resto não existe. Porém
surgiram outros mundos, onde elas acontecem. E eu pretendo ir a esse mundo por trás
da Aurora Boreal, porque acho que é de lá que vem o Pó do nosso universo. Você viu
aqueles slides que mostrei aos Catedráticos na Sala Privativa; viu o Pó jorrando neste
mundo, vindo da Aurora Boreal. Você mesma viu aquela cidade. Se a luz pode
atravessar a barreira entre os universos, se o Pó pode, se nós conseguimos ver aquela
cidade, então podemos construir uma ponte e atravessar. É preciso uma descarga de
energia fenomenal, mas tenho como fazer isso. Em algum lugar está a origem de todo
o Pó, toda morte, pecado, miséria, destruição no mundo! Os seres humanos não
conseguem ver qualquer coisa sem querer destruí-la, Lyra. Este é que é o pecado
original. E eu vou acabar com ele. A morte vai morrer.
– Foi por isso que prenderam o senhor aqui?
– É. Estão apavorados. E com razão.
Ele ficou de pé, imitado pelo seu próprio daemon - orgulhoso, lindo e letal. Lyra
ficou imóvel. Tinha medo do pai, admirava-o profundamente e achava que ele estava
inteiramente louco, mas quem era ela para julgar?
– Vá para a cama – ele ordenou. – Thorold vai lhe mostrar onde dormir.
Ele virou-se para sair.
– O senhor está esquecendo o aletômetro – ela avisou.
– Ah, é. Na verdade, não preciso mais dele. De qualquer maneira, não ia ser útil
sem os livros. Sabe, acho que o Reitor da Jordan estava dando o aletômetro para
você. Ele pediu mesmo que você o trouxesse para mim?
– Sim, ora! – ela exclamou.
Mas parou para pensar e concluiu que, na verdade, o Reitor não tinha lhe pedido
para fazer isso; ela imaginava que era o que ele pretendia.
– Não – corrigiu. – Não sei. Pensei que...
– Bem, eu não o quero. Ele é seu, Lyra.
– Mas...
– Boa noite, garota.
Sem palavras, perplexa demais com isso para exprimir uma sequer das dezenas
de perguntas que lhe enchiam a mente, ela pegou o aletômetro e embrulhou-o no
veludo preto. Então sentou-se perto do fogo e ficou vendo Lorde Asriel retirar-se do
aposento.