sábado, 18 de outubro de 2014

21- As Boas-Vindas de Lorde Asriel

Lyra cavalgava um urso jovem e forte, e Roger viajava montado em outro, ao
passo que Iorek caminhava incansavelmente à frente; atrás deles ia um grupo
armado com um lançador de fogo, defendendo a retaguarda. O caminho era longo
e difícil: o interior de Svalbard, montanhoso, com picos irregulares e desfiladeiros
profundos cortados por ravinas e vales de paredes íngremes; e o frio, intenso.
Lyra recordou os trenós velozes e macios dos gípcios a caminho de
Bolvangar; como aquela viagem parecia agora rápida e confortável! O ar aqui era
o mais penetrante e frio que ela já conhecera; ou podia ser que o urso que ela
montava não fosse tão ágil quanto Iorek Byrnison; ou talvez ela estivesse cansada
até a alma. De qualquer maneira, foi uma viagem desesperadamente dura.
Ela pouco sabia sobre para onde estavam indo, ou a que distância ficava; tudo
que sabia era o que o urso ancião Soren Eisarson lhe contara enquanto preparavam o
lançador de fogo.
Ele participara das negociações a respeito das condições do encarceramento de
Lorde Asriel e se lembrava muito bem.
Ele disse que, no início, os ursos de Svalbard consideravam Lorde Asriel igual a
qualquer dos outros políticos, reis ou baderneiros que tinham sido exilados para aquela
ilha distante. Os prisioneiros eram importantes, senão teriam sido mortos por seu
próprio povo; podiam ser valiosos para os ursos um dia, se seus destinos políticos
mudassem e eles voltassem a governar suas terras; portanto, podia valer a pena não
tratá-los com crueldade ou desrespeito.
De modo que Lorde Asriel tinha achado as condições em Svalbard nem melhores,
nem piores do que as de centenas de outros exilados antes dele. Mas certas coisas
faziam seus carcereiros terem mais medo dele do que dos outros prisioneiros; havia um
ar de mistério e de perigo espiritual que envolvia qualquer coisa relacionada ao Pó; eles
tinham visto o pânico evidente daqueles que haviam levado Lorde Asriel até lá; e havia
as comunicações particulares entre a Sra. Coulter e Iofur Raknison.
Além disso, os ursos nunca tinham visto alguém com a natureza orgulhosa e
autoritária de Lorde Asriel. Ele dominava até mesmo Iofur Raknison, discutindo com
firmeza e eloqüência, e convenceu o urso-rei a permitir que ele próprio escolhesse o
lugar onde ia morar.
O primeiro que lhe deram era baixo demais; ele disse que precisava de um lugar
no alto, acima da fumaça e da poluição das minas de fogo e dos ferreiros. Deu aos
ursos uma planta do alojamento que desejava e lhes disse onde devia ser construído;
ele os subornou com ouro e lisonjeou e intimidou Iofur Raknison; de boa vontade,
achando graça, os ursos puseram-se a trabalhar .Em pouco tempo, uma casa foi
construída numa ponta de terra virada para o norte: uma construção ampla e sólida,
com lareiras que queimavam grandes blocos de carvão retirados da terra e carregados
por ursos, e com grandes janelas de vidro de verdade. Ali ele vivia, um prisioneiro
agindo como um rei.
E então dedicou-se a reunir o material para um laboratório.
Com furiosa concentração, mandou buscar livros, instrumentos, agentes químicos,
todo tipo de ferramentas e aparelhos. E de um jeito ou de outro, recebeu tudo que
pedira – uma parte abertamente, outra contrabandeada pelos visitantes que ele insistia
ter direito de receber. Por terra, mar e ar, Lorde Asriel reuniu seu material, e aos seis
meses de prisão já possuía todo o equipamento que queria.
E então começou a trabalhar, pensando, planejando e calculando, esperando a
única coisa que precisava para completar o trabalho que tanto assustava o Conselho de
Oblação. E essa coisa estava cada vez mais próxima.
A primeira visão que Lyra teve da prisão de seu pai veio quando Iorek Byrnison
fez alto no sopé de um rochedo para que as crianças esticassem as pernas, que
estavam ficando perigosamente frias e rígidas.
– Olhe lá para cima – ele disse.
Um aclive coberto de rochas e gelo de uma antiga avalanche, onde uma trilha
tinha sido trabalhosamente aberta, levava ao topo de um penhasco destacado em
silhueta contra o céu. Não havia Aurora, mas as estrelas brilhavam. O penhasco
mostrava-se negro e hostil, mas no topo via-se um prédio espaçoso, de onde jorrava
luz em todas as direções – não o brilho enfumaçado e inconstante das lamparinas a
gordura de peixe, nem a luz branca e chocante dos holofotes anbáricos, mas a luz
cálida da nafta.
As janelas de onde a luz emergia também mostravam o formidável poder de
Lorde Asriel. O vidro era um material caro, que em grandes extensões ajudava a
manter o calor nessas regiões inóspitas; assim, esse material evidenciava dinheiro e
influência, muito mais do que o palácio vulgar de Iofur Raknison.
Montaram nos ursos pela última vez, e Iorek guiou-os encosta acima até a casa.
Havia um pátio coberto de neve, rodeado por um muro baixo; quando Iorek empurrou o
portão, ouviu-se uma campainha tocar em algum lugar dentro da casa.
Lyra desceu do urso. Mal conseguia ficar de pé. Ajudou Roger a desmontar
também e, um apoiando o outro, os dois rumaram para a porta, atravessando a neve
que chegava até seus quadris.
Ah, como lá dentro devia estar quentinho! Ah, como ia ser bom descansar em
paz!
Ela estendeu a mão para a corda da sineta, mas a porta se abriu antes que
pudesse pegá-la. Havia um pequeno vestíbulo mal iluminado, que servia para manter o
ar quente dentro de casa, e parado sob a lamparina estava uma pessoa que ela
reconheceu: Thorold, o criado de Lorde Asriel, com seu daemon-pinscher Anfang.
Com um gesto cansado, Lyra empurrou o capuz para trás.
– Quem... – Thorold começou, mas logo a reconheceu, e continuou: – Não é
Lyra? A pequena Lyra? Estou sonhando?
Ele estendeu a mão para trás para abrir a porta interna.
Um salão com um fogo de carvão ardendo numa plataforma de pedra, a cálida luz
de nafta brilhando nos tapetes, nas poltronas de couro, na madeira encerada... Lyra
não via isto desde que deixara a Faculdade Jordan, e sentiu a garganta apertada.
A pantera branca, daemon de Lorde Asriel, rosnou.
Ali estava o pai de Lyra, seu rosto moreno e forte, a princípio intenso, triunfante e
ansioso. E então a cor desapareceu; ele arregalou os olhos, horrorizado, ao
reconhecer a filha.
– Não! Não!
Cambaleou para trás e agarrou-se à prateleira sobre a lareira.
Lyra não conseguia se mover.
– Saia! – Lorde Asriel gritou. – Dê meia-volta e saia, vá embora! Não mandei
buscá-la!
Ela não conseguia falar. Por duas vezes abriu a boca e então conseguiu dizer:
– Não, não, eu vim porque...
Ele parecia apavorado; não parava de sacudir a cabeça e ergueu as mãos como
se para afastá-la. Ela não conseguia acreditar naquilo.
Deu um passo à frente para tranqüilizá-lo, e Roger veio ficar ao seu lado, ansioso.
Os seus daemons saíram voejando, e um momento depois Lorde Asriel passou a mão
pela testa e controlou-se um pouco. A cor começou a voltar ao seu rosto enquanto ele
contemplava as duas crianças.
– Lyra – disse. – É mesmo Lyra?
–Sou, sim, tio Asriel – ela respondeu, achando que aquele não era o momento
para falar de seu verdadeiro parentesco. – Vim lhe trazer o aletômetro, da parte do
Reitor da Jordan.
– Ah, sim, naturalmente- fez ele. – Quem é este aí?
– É Roger Parslow – ela explicou. – É ajudante na Cozinha da Faculdade Jordan.
Mas...–
Como foi que chegou aqui?
– Eu estava contando, Iorek Byrnison está lá fora, ele nos trouxe aqui. Veio
comigo desde Trollesund, e nós enganamos Iofur...
– Quem é Iorek Byrnison?
– Um urso de armadura. Ele nos trouxe aqui.
– Thorold! – ele chamou. – Prepare um banho para esses dois e alguma comida.
Depois eles vão precisar dormir. As roupas deles estão imundas; arranje alguma coisa
para eles usarem. Faça isso agora, enquanto eu converso com esse urso.
Lyra sentiu a cabeça rodar. Talvez fosse o calor, talvez alívio.
Ela observou o criado fazer uma mesura e sair do salão, e Lorde Asriel sair para
o vestíbulo e fechar a porta atrás de si, e então ela se deixou cair na poltrona mais
próxima.
Parecia que, no instante seguinte, Thorold estava falando com ela.
– Venha comigo, senhorita.
Ela forçou-se a levantar e foi com Roger para um banheiro aquecido, onde toalhas
macias estavam penduradas num varal aquecido e uma banheira de água quente
soltava vapor à luz de nafta.
– Vá você primeiro – disse Lyra. – Vou me sentar lá fora para conversarmos.
Então Roger, fazendo careta por causa da água quente, entrou na banheira e
tomou banho. Eles tinham nadado sem roupa muitas vezes, brincando no Ísis ou no
Cherwell com outras crianças, mas agora era diferente.
– Estou com medo do seu tio – disse Roger através da porta aberta. – Quer
dizer, do seu pai.
– É melhor continuar chamando ele de meu tio. Eu também tenho medo dele, às
vezes.–
Quando a gente entrou, ele não me viu. Só viu você. E ficou apavorado, até me
ver. Então se acalmou de repente.
– Ele ficou chocado, só isso – disse Lyra. –Qualquer pessoa ficaria, vendo
alguém que não esperava ver. A última vez que ele me viu foi depois daquele caso da
Sala Privativa. Deve ter sido mesmo um choque.
– Não, foi mais que isso – Roger insistiu. – Ele estava olhando para mim como um
lobo ou coisa assim.
– Você está imaginando coisas.
– Não estou. Tenho mais medo dele do que tinha da Sra.Coulter, a verdade é
esta.
Enquanto ele jogava água em cima do corpo, Lyra pegou o aletômetro.
– Quer que eu pergunte ao leitor de símbolos sobre isso? – perguntou.
– Bom, sei lá. Algumas coisas eu prefiro não saber. Parece que tudo que ouvi
depois que os Papões chegaram em Oxford, tudo foi ruim. Tudo no futuro depois de
cinco minutos tem sido ruim. Como agora, este banho está gostoso, e no futuro daqui a
cinco minutos vai ter uma toalha quentinha. E enquanto eu me enxugo, vou pensar numa
comida gostosa cinco minutos depois, mas só vou até aí. Depois de comer, talvez
dentro de cinco minutos eu possa estar dormindo numa cama confortável. Mas ir depois
disso, não sei, Lyra. Nós vimos coisas horríveis, não foi? E ainda vem mais, com
certeza. Então acho melhor não saber o que está no futuro. Prefiro o presente.
– Está certo. As vezes sinto isso também – disse ela em tom cansado.
Assim, embora ficasse com o aletômetro na mão por mais algum tempo, era
apenas como um amuleto; não mexeu nos ponteiros e não percebeu que o ponteiro
grande se mexia. Pantalaimon observava em silêncio.
Depois que ambos tomaram banho e comeram pão com queijo, bebendo vinho
com água quente, o criado Thorold disse:
– O menino deve ir para a cama. Vou-lhe mostrar o caminho. Srta. Lyra, Lorde
Asriel pede que vá ao encontro dele na Biblioteca.
Lyra encontrou Lorde Asriel num aposento com janelas largas que davam para o
mar congelado bem abaixo deles. Havia um fogo de carvão numa ampla lareira e uma
lamparina a nafta com a chama bem baixa, de modo que havia poucos obstáculos entre
os ocupantes da sala e a paisagem escura e estrelada lá fora. Lorde Asriel, reclinado
numa grande poltrona a um lado da lareira, indicou que ela ocupasse a outra poltrona,
de frente para ele.
– Seu amigo Iorek Byrnison está descansando lá fora - informou. – Ele prefere o
frio.
– Ele lhe contou a luta com Iofur Raknison?
– Não com detalhes. Mas entendi que agora ele é o rei de Svalbard. Isso é
verdade?
– Claro que é. Iorek nunca mente.
– Parece que ele se nomeou seu guardião...
– Não. John Faa disse a ele para tomar conta de mim, e ele está obedecendo.
Está seguindo as ordens de John Faa.
– Como é que John Faa entrou nesta história?
– Eu lhe conto se o senhor me contar uma coisa –ela propôs. – O senhor é meu
pai, não é?
– Sou. E daí?
– Daí que devia ter me contado antes. Não devia esconder esse tipo de coisa das
pessoas, porque elas se sentem idiotas quando descobrem, e isso é crueldade. Que
diferença faria se eu soubesse que era sua filha? O senhor podia ter me contado há
muitos anos. Podia ter me contado e pedido para eu guardar segredo, e eu guardaria,
pois mesmo sendo muito criança, eu teria feito isso se o senhor me pedisse. Eu teria
tanto orgulho que nada arrancaria isso de mim, se o senhor me pedisse para guardar
segredo. Mas o senhor não. Contou a outras pessoas, mas não a mim.
– Quem lhe contou?
– John Faa.
– Ele falou da sua mãe?
– Falou, sim.
– Então não resta muita coisa para eu contar. Acho que não quero ser interrogado
e condenado por uma garota insolente. Quero saber o que você viu e fez na sua viagem
para cá.
– Eu lhe trouxe o maldito aletômetro, não trouxe? –Lyra explodiu. Estava quase
chorando. – Cuidei dele desde que saí da Jordan, escondi bem escondido e me
preocupei, passando por tudo que nos aconteceu. E aprendi como é que se usa e
carreguei ele por todo o maldito caminho, quando podia simplesmente entregar ele e
ficar em segurança, e o senhor nem diz obrigado, nem mostra qualquer sinal de estar
feliz em me ver. Não sei porque resolvi fazer isso. Mas fiz, persisti, mesmo no palácio
fedorento de Iofur Raknison, com todos aqueles ursos me cercando, eu persisti,
sozinha, e enganei ele, fazendo-o lutar com Iorek para que eu pudesse vir até aqui por
sua causa... E quando o senhor me viu, quase desmaiou, como se eu fosse alguma
coisa horrível que o senhor nunca mais queria ver. O senhor não é humano, Lorde
Asriel. Não é meu pai. Meu pai não me trataria assim. Os pais amam as filhas, não
amam? O senhor não me ama, e eu não amo o senhor, e pronto. Eu amo Farder
Coram, amo Iorek Byrnison. Amo um urso de armadura mais do que amo o meu pai. E
aposto que Iorek Byrnison me ama mais que o senhor.
– Você mesma me disse que ele está só obedecendo ordens de John Faa. Se vai
ficar sentimental, não vou perder meu tempo conversando com você.
– Então pegue o seu maldito aletômetro, e eu vou voltar com Iorek.
– Para onde?
– Para o palácio. Ele pode lutar contra a Sra. Coulter e o Conselho de Oblação
quando eles aparecerem. Se ele perder, eu também vou morrer, mas não me importo.
Se ele vencer, vamos mandar buscar Lee Scoresby, e eu vou embarcar no balão dele
e...
– Quem é Lee Scoresby?
– Um aeróstata. Ele nos trouxe aqui e então caímos. Pronto, aqui está o
aletômetro. Está em perfeito estado.
Ele não fez menção de pegar o instrumento, de modo que ela o colocou na grade
de bronze que rodeava a frente da lareira.
– Bom, acho que é minha obrigação dizer que a Sra.Coulter está a caminho de
Svalbard e assim que souber o que aconteceu a Iofur Raknison ela virá para cá. Num
zepelim, com muitos soldados, e vão matar nós todos por ordem do Magisterium.
– Não vão nos alcançar- ele disse calmamente.
Estava tão calmo e relaxado que parte da raiva dela se desfez.
– O senhor não tem como saber – ela disse, hesitante.
– Mas sei.
– Então tem outro aletômetro?
– Não preciso de um aletômetro para isso. Agora quero saber da sua viagem
para cá, Lyra. Comece do princípio. Conte-me tudo.
Ela assim fez. Começou na noite em que se escondeu na Sala Privativa, depois
falou no sequestro de Roger pelos Papões e o tempo que passou com a Sra. Coulter,
e tudo que tinha acontecido.
Era uma longa história, e quando terminou, ela disse:
– Só tem uma coisa que eu quero saber, e acho que tenho esse direito, como
tinha o direito de saber quem eu sou de verdade. E como não me contou aquilo, vai me
contar isso como recompensa. Pronto: o que é Pó? E por que todo mundo tem tanto
medo dele?
Ele a encarou como se quisesse adivinhar se ela compreenderia o que ele estava
prestes a dizer. Lyra pensou: ele nunca havia olhado seriamente para ela; até então
tinha sido sempre como um adulto observando as gracinhas de uma criança. Mas
parece que ele achou que ela estava pronta.
– Pó é o que faz o aletômetro funcionar – disse.
– Ah... Achei que fosse mesmo! Que mais? Como foi que descobriram isso?
– De certo modo, a Igreja sempre soube. Durante séculos, eles vêm fazendo
sermões sobre Pó, só que não usam este nome. Mas, há alguns anos, um moscovita
chamado Boris Mikhailovitch Rusakov descobriu um novo tipo de partícula elementar.
Você já ouviu falar em elétrons, fótons, neutrinos e o resto? Receberam o nome de
partículas elementares porque não podem ser divididas: não há nada dentro delas além
delas mesmas. Bem, esse novo tipo de partícula era realmente elementar, mas era
muito difícil de ser medida porque não reagia de modo normal. A coisa mais difícil para
Rusakov foi entender por que a nova partícula parecia juntar-se onde havia seres
humanos, como se fosse atraída por nós. E especialmente por adultos. Pelas crianças
também, mas não tanto, até seus daemons fixarem sua forma. Durante os anos de
puberdade, elas começam a atrair Pó com mais força, e ele pousa nelas como pousa
nos adultos.
Ele parou para respirar, mas logo prosseguiu:
– Ora, todas as descobertas desse tipo, por terem influência nas doutrinas da
Igreja, têm que ser anunciadas através do Magisterium em Gênova. E essa descoberta
de Rusakov era tão improvável e estranha que o Inspetor do Tribunal Consistorial de
Disciplina suspeitou que Rusakov estivesse possuído pelo diabo. Fizeram um exorcismo
no laboratório e interrogaram Rusakov segundo as regras da Inquisição, mas afinal
tiveram que aceitar o fato de que Rusakov não estava mentindo ou tentando enganálos:
o Pó realmente existia. Assim surgiu o problema de decidir o que era isso. E devido
à natureza da Igreja só poderiam ter escolhido uma coisa: o Magisterium decidiu que o
Pó era a evidência física do pecado original. Sabe o que é pecado original? Ela torceu
os lábios. Era como estar de volta à Jordan, sendo sabatinada sobre alguma coisa que
mal lhe tinham ensinado.
– Mais ou menos – respondeu.
– Não sabe, não. Vá até a prateleira atrás da escrivaninha e me traga a Bíblia.
Lyra assim fez e entregou ao pai o grande livro de capa preta.
– Lembra-se da história de Adão e Eva?
– Claro. Ela não devia comer o fruto, mas foi tentada pela serpente e comeu.
– Que foi que aconteceu então?
– Hum... Eles foram expulsos. Deus expulsou os dois do paraíso.
– Deus tinha dito para eles não comerem o fruto, senão eles iam morrer. Lembrese,
eles estavam nus no paraíso, eram como crianças, seus daemons tinham a forma
que desejassem ter. Mas ouça o que aconteceu...
Ele procurou o Capítulo Terceiro do Gênesis e leu:
"E a mulher disse à serpente: 'Nós comemos do fruto das árvores que estão no
paraíso. Mas do fruto da árvore que está no meio do paraíso Deus mandou que não o
comêssemos, e nem o tocássemos, para que não suceda que morramos.'
"Porém a serpente disse à mulher: 'Vós de nenhum modo morrereis. Pois Deus
sabe que, em qualquer dia que comerdes dele, abrir-se-ão os vossos olhos, e vossos
daemons assumirão suas formas verdadeiras, e sereis como deuses, conhecendo o
bem e o mal'
" Viu, pois, a mulher que (o fruto da) árvore era bom para comer, e formoso aos
olhos, e uma árvore desejável para revelar a forma verdadeira do daemon de alguém; e
tirou do fruto dela, e comeu; e deu a seu marido, que também comeu.
" E os olhos de ambos se abriram, e eles viram a forma verdadeira de seus
daemons, e falaram com eles.
" Mas quando o homem e a mulher conheceram seus próprios daemons, viram
que uma grande transformação neles se efetuara, pois até aquele momento parecia
que eles eram como todas as criaturas da terra e do céu, e não havia diferença entre
eles.
" E eles enxergaram a diferença, e conheceram o bem e o mal; e envergonharamse,
E coseram folhas de figueira para cobrir sua nudez..."
Ele fechou o livro.
– E foi assim que o pecado chegou ao mundo – disse. - O pecado, a vergonha e
a morte. Ele surgiu no momento em que os daemons de Adão e Eva se tornaram
imutáveis.
– Mas... – Lyra lutou para encontrar as palavras que queria. – Mas isso não é
verdade, é? Não é como química ou engenharia, não é esse tipo de verdade, é? Adão
e Eva nunca existiram, não é? O Catedrático de cassington me disse que era só uma
espécie de conto de fadas.
–A cátedra de cassington tradicionalmente é dada a um livre-pensador; a função
dele é desafiar a fé dos Catedráticos. Naturalmente ele tinha que dizer isso. Mas pense
em Adão e Eva como um número imaginário, como a raiz quadrada de menos um: a
gente nunca vê uma prova concreta de que ele existe, mas quando incluímos esse
número nas nossas equações, podemos calcular todo tipo de coisa que seria
impossível imaginar sem ele. De qualquer maneira, essa história é o que a Igreja vem
ensinando há milhares de anos. E quando Rusakov descobriu o Pó, finalmente havia
uma prova física de que alguma coisa acontecia quando a inocência se transformava
em experiência. Aliás, a Bíblia nos deu também o nome "Pó"; no princípio chamava-se
Partículas de Rusakov, mas logo alguém observou um curioso versículo no final do
Capítulo Terceiro do Gênesis, quando Deus amaldiçoa Adão por ter comido o fruto.
Ele tornou a abrir a Bíblia e mostrou a Lyra. Ela leu:
"Comerás o pão com o suor do teu rosto até que voltes à terra, de que foste
tomado: porque tu és pó, e em pó te hás de tornar... "
Lorde Asriel continuou:
– Os estudiosos da Igreja sempre ficaram confusos com a tradução deste
versículo. Alguns dizem que não deveria ser "ao pó retornarás" mas sim "serás sujeito
ao pó", e outros dizem que o versículo inteiro é uma espécie de trocadilho com as
palavras"terra" e "pó" e que ele significa na verdade que Deus está admitindo que sua
própria natureza é parcialmente pecaminosa. Não há um consenso; não se consegue
chegar a uma conclusão, porque esse texto foi modificado. Mas a palavra servia bem
demais, e é por isso que as partículas ficaram conhecidas como Pó.
– E quanto aos Papões? – Lyra quis saber.
– O Conselho Geral de Oblação.. .A quadrilha da sua mãe. Foi muita esperteza
dela identificar a oportunidade de formar sua própria base de poder, mas ela é uma
mulher esperta, como você já deve ter percebido. É vantajoso para o Magisterium
permitir que floresça todo tipo de diferentes organizações. Podem jogar umas contra as
outras; se uma der certo, podem fingir que a apoiaram o tempo todo, e se ela
fracassar, eles podem fingir que era uma organização clandestina que nunca foi
licenciada. Sabe, sua mãe sempre ambicionou o poder. No princípio, tentou conseguir
poder pela maneira normal, através do casamento, mas isto não funcionou, como você
deve ter ouvido contar. De modo que ela teve que recorrer à Igreja. Naturalmente ela
não podia seguir o caminho que um homem seguiria, ser padre e subir na hierarquia da
Igreja, de modo que teve que fazer uma coisa alternativa: teve que criar sua própria
ordem, seus próprios canais de influência, e trabalhar com isso. Foi uma boa jogada
especializar- se no Pó. Todo mundo tinha medo dele, ninguém sabia o que fazer; e
quando ela se ofereceu para dirigir uma investigação, o Magisterium ficou tão aliviado
que eles a apoiaram com dinheiro e recursos de todo tipo.
– Mas eles estavam cortando... – Lyra não conseguiu dizer o resto; as palavras
ficaram bloqueadas em sua garganta. - O senhor sabe o que estavam fazendo! Por
que a Igreja deixou que fizessem uma coisa como essa?
– Havia um precedente. Já ocorrera uma coisa parecida. Sabe o que significa a
palavra "castração"? Significa remover os órgãos sexuais de um menino para que ele
nunca desenvolva as características de um homem. Um castrato tem a voz fina pelo
resto da vida, e é por isto que a Igreja permitia isso: era útil nos coros da Igreja. Alguns
castrati tornaram-se grandes cantores, artistas maravilhosos. Muitos tornaram- se
apenas meio-homens, balofos e temperamentais. Alguns morreram por causa da
operação. Mas a Igreja não se importou com a idéia de um pequeno corte, entende?
Havia um precedente. E isso seria muito mais higiênico do que os métodos antigos,
quando não existia anestesia nem curativos esterilizados. Agora a operação seria muito
mais suave.
– Não é, não! – Lyra exclamou com ferocidade. –Não é não!
– Não. Claro que não. É por isso que tiveram que se esconder no Extremo Norte,
na distância e na escuridão. E por isso a Igreja ficou tão contente em ter alguém como
a sua mãe tomando conta. Quem iria duvidar de uma mulher tão encantadora, tão bemrelacionada,
tão simpática e educada? Mas por se tratar de uma operação obscura e
clandestina, ela era alguém que o Magisterium poderia negar conhecer, se fosse
necessário.
– Mas de quem foi a idéia de fazer esse corte?
– Foi dela. Ela adivinhou que as duas coisas que acontecem na adolescência
poderiam estar ligadas: a mudança no daemon e o fato de que o Pó começa a pousar.
Talvez, se o daemon fosse separado do corpo, pudéssemos não ser sujeitos ao Pó, ao
pecado original. A questão era se seria possível separar o daemon do corpo sem
matar a pessoa. Mas ela viajou por muitos lugares e viu muitas coisas. Viajou pela
África, por exemplo. Os africanos conseguem criar um escravo chamado zumbi. Ele
não tem vontade própria; trabalha dia e noi te sem fugir e sem reclamar. Parece um
cadáver...
– É uma pessoa sem seu daemon!
– Exatamente. Assim, ela descobriu que era possível separar os dois.
– E... Tony Costa me contou sobre os fantasmas horríveis que existem nas
florestas do Norte. Imagino que devem ser o mesmo tipo de coisa.
– Isso mesmo. De qualquer maneira, o Conselho Geral de Oblação cresceu por
causa de idéias como esta e da obsessão da Igreja com o pecado original.
O daemon de Lorde Asriel vibrou as orelhas, e ele pousou a mão na bela cabeça
do animal.
– Mais uma coisa acontecia quando faziam o corte, porém eles não perceberam –
ele continuou. – A energia que liga o corpo ao daemon é imensamente poderosa;
quando o corte é feito, toda essa energia se dissipa numa fração de segundo. Eles não
perceberam, pois confundiram com choque, ou trauma, ou raiva, e treinaram-se para
não sentir aquilo. De modo que deixaram de ver o que essa energia podia fazer e nunca
pensaram em aproveitá-la...
Lyra não conseguia ficar quieta; levantou-se, caminhou até a janela e ficou
contemplando a escuridão. Eles eram cruéis demais! Por mais que fosse importante
descobrir sobre o pecado original, era crueldade demais o que tinham feito a Tony
Makarios e todos os outros. Nada justificava isso.
– E o que o senhor estava fazendo? – ela perguntou. - Também cortou alguém?
– Estou interessado em coisa completamente diferente. Acho que o Conselho de
Oblação não avança o suficiente; eu quero ir à própria fonte do Pó.
– A fonte? De onde ele vem, então?
– Do outro universo que conseguimos ver através da Aurora Boreal.
Lyra virou-se outra vez para a sala. Seu pai estava recostado na poltrona,
relaxado e poderoso, os olhos tão ferozes quanto os de seu daemon. Ela não o amava,
não conseguia confiar nele, mas não podia deixar de admirá-lo, admirar o luxo
extravagante que ele reunira naquela imensidão desolada, admirar o poder da ambição
dele.
– O que é esse outro universo? – perguntou.
– Um dos incontáveis bilhões de mundos paralelos. As bruxas sabem sobre eles
há séculos, mas os primeiros teólogos a provarem matematicamente a existência deles
foram excomungados, há uns 70 anos ou mais. No entanto, é verdade; não há como
negar. Mas ninguém pensava que um dia seria possível atravessar de um universo para
outro. Isso violaria leis fundamentais, nós achávamos. Bem, estávamos errados.
Aprendemos a enxergar o mundo lá em cima; ora, se a luz consegue atravessar, nós
também conseguimos. E tivemos que aprender a enxergar esse outro mundo, Lyra,
assim como você aprendeu a usar o aletômetro. Ora, esse mundo e todos os outros
universos surgiram como resultado da possibilidade. Veja o exemplo de jogar uma
moeda para o alto: pode cair cara ou coroa, e antes que ela caia não sabemos como
vai cair. Se cair cara, isto significa que a possibilidade de cair coroa está destruída,
mas até aquele momento as duas possibilidades eram iguais.
Ele silenciou por um instante.
– Mas em outro mundo ela cai coroa – prosseguiu. –E quando isso acontece, os
dois mundos se separam. Estou usando o exemplo de uma moeda para tornar a coisa
mais clara. Na verdade, essas destruições de possibilidade acontecem do mesmo
modo no nível das partículas elementares: em dado momento, várias coisas são
possíveis; no momento seguinte, apenas uma acontece e o resto não existe. Porém
surgiram outros mundos, onde elas acontecem. E eu pretendo ir a esse mundo por trás
da Aurora Boreal, porque acho que é de lá que vem o Pó do nosso universo. Você viu
aqueles slides que mostrei aos Catedráticos na Sala Privativa; viu o Pó jorrando neste
mundo, vindo da Aurora Boreal. Você mesma viu aquela cidade. Se a luz pode
atravessar a barreira entre os universos, se o Pó pode, se nós conseguimos ver aquela
cidade, então podemos construir uma ponte e atravessar. É preciso uma descarga de
energia fenomenal, mas tenho como fazer isso. Em algum lugar está a origem de todo
o Pó, toda morte, pecado, miséria, destruição no mundo! Os seres humanos não
conseguem ver qualquer coisa sem querer destruí-la, Lyra. Este é que é o pecado
original. E eu vou acabar com ele. A morte vai morrer.
– Foi por isso que prenderam o senhor aqui?
– É. Estão apavorados. E com razão.
Ele ficou de pé, imitado pelo seu próprio daemon - orgulhoso, lindo e letal. Lyra
ficou imóvel. Tinha medo do pai, admirava-o profundamente e achava que ele estava
inteiramente louco, mas quem era ela para julgar?
– Vá para a cama – ele ordenou. – Thorold vai lhe mostrar onde dormir.
Ele virou-se para sair.
– O senhor está esquecendo o aletômetro – ela avisou.
– Ah, é. Na verdade, não preciso mais dele. De qualquer maneira, não ia ser útil
sem os livros. Sabe, acho que o Reitor da Jordan estava dando o aletômetro para
você. Ele pediu mesmo que você o trouxesse para mim?
– Sim, ora! – ela exclamou.
Mas parou para pensar e concluiu que, na verdade, o Reitor não tinha lhe pedido
para fazer isso; ela imaginava que era o que ele pretendia.
– Não – corrigiu. – Não sei. Pensei que...
– Bem, eu não o quero. Ele é seu, Lyra.
– Mas...
– Boa noite, garota.
Sem palavras, perplexa demais com isso para exprimir uma sequer das dezenas
de perguntas que lhe enchiam a mente, ela pegou o aletômetro e embrulhou-o no
veludo preto. Então sentou-se perto do fogo e ficou vendo Lorde Asriel retirar-se do
aposento.

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