quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Capítulo Vinte e Cinco

Acordei na manhã seguinte em pânico porque tinha sonhado que estava sozinha, dentro de um lago enorme, sem um barco.
Levantei no susto, puxando o BiPAP com força para a frente, e senti a mão da mamãe em mim.
— Oi, você está bem?
Meu coração estava disparado, mas fiz que sim com a cabeça. Mamãe falou:
— A Kaitlyn está ao telefone e quer falar com você.
Apontei para o BiPAP. Ela me ajudou a tirá-lo e me conectou ao Felipe. Só então peguei o celular da mão da mamãe e disse:
— Oi, Kaitlyn.
— Só liguei para saber como está tudo — ela disse. — Para ver como você está indo.
— Ah, obrigada. Estou indo bem.
— Você simplesmente teve um azar enorme, amada. Isso é tão desarrazoado!
— Talvez — falei.
Eu não pensava muito mais na minha sorte ou no meu azar. Na verdade, não queria falar com a Kaitlyn sobre nada, mas ela insistia em puxar assunto.
— E então, como foi? — ela perguntou.
— Como foi a morte do meu namorado? Humm, uma droga.
— Não — ela falou. — Estar apaixonada.
— Ah — falei. — Ah. Foi… foi legal passar um tempo com alguém tão interessante. Nós éramos muito diferentes, e discordávamos em muitas coisas, mas ele era sempre tão interessante, sabe?
— Ai de mim, não sei. Os garotos que eu conheço são extremamente desinteressantes.
— Ele não era perfeito nem nada. Ele não era um príncipe encantado de conto de fadas, e tal. Tentava ser assim às vezes, mas eu gostava mais dele quando essas coisas desapareciam.
— Você tem, tipo, um álbum com as fotos e as cartas que ele escreveu?
— Tenho algumas fotos, mas ele nunca chegou a me escrever nenhuma carta. Exceto, bem, há algumas páginas faltando no caderninho dele que podem ter sido algo para mim, mas acho que ele as jogou fora ou elas se perderam ou coisa assim.
— Talvez ele tenha mandado essas páginas pelo correio para você — ela disse.
— Não, elas já teriam sido entregues aqui.
— Então talvez não tenham sido escritas para você — ela falou. —Talvez… Quer dizer, não quero deixar você deprimida nem nada, mas talvez ele as tenha escrito para outra pessoa e colocado no correio…
— VAN HOUTEN! — gritei.
— Você está bem? Isso foi uma tosse?
— Kaitlyn, eu te amo. Você é um gênio. Tenho que ir agora.
Desliguei o telefone, rolei para o lado, peguei o laptop, apertei o botão de ligar e então escrevi um e-mail endereçado a Lidewij Vliegenthart.

Lidewij, 
Acredito que o Augustus Waters tenha enviado algumas páginas do 
caderninho dele para o Peter Van Houten logo antes de ele (o Augustus) 
morrer. É muito importante para mim que alguém leia essas páginas. Eu 
quero lê-las, claro, mas talvez elas não tenham sido escritas para mim. De 
qualquer forma têm de ser lidas. Precisam ser lidas. 
Você poderia me ajudar com isso?

Hazel Grace Lancaster 

Ela respondeu no fim daquela tarde.

Querida Hazel,

Eu não sabia que o Augustus tinha morrido. Fiquei muito triste ao saber do acontecido. Ele era um jovem muito carismático. Sinto tanto. 
Estou tão triste. Não falei com o Peter desde que me demiti, naquele dia em que nos conhecemos. Está muito tarde aqui agora, mas irei até a casa dele amanhã cedo a fim de procurar essa carta e forçá-lo a lê-la. As manhãs costumavam ser a melhor hora para falar com ele. 

Sua amiga, 
Lidewij Vliegenthart 
PS: Levarei meu namorado comigo, para o caso de termos de conter o Peter fisicamente. 


* * *


Fiquei me perguntando por que ele teria escrito para o Van Houten naqueles últimos dias em vez de para mim, dito que ele só seria absolvido se me desse a minha continuação. Talvez as páginas do caderninho só
repetissem seu pedido ao Van Houten. Fazia sentido, o Gus usando sua terminalidade para realizar meu sonho: a continuação da história era um algo muito pequeno pelo qual morrer, mas foi o maior que restou à sua disposição. Atualizei meus e-mails sem parar aquela noite, dormi algumas horas, e então comecei a atualizar de novo lá pelas cinco da manhã. Mas não chegou nada.
Tentei ver TV para me distrair, mas minha cabeça ficava viajando de volta a Amsterdã, imaginando a Lidewij Vliegenthart e o namorado percorrendo a cidade de bicicleta numa louca missão à procura da última
correspondência de um garoto morto. Como seria divertido ir sacudindo na traseira da bicicleta da Lidewij Vliegenthart pelas ruas de paralelepípedo, seu cabelo vermelho e ondulado sendo soprado em meu rosto, o cheiro dos canais e da fumaça dos cigarros, todas aquelas pessoas sentadas do lado de fora dos cafés bebendo cerveja, falando suas letras ‚R‛ e ‚G‛ de um jeito que eu jamais aprenderia…Eu sentia falta do futuro. É claro que eu sabia, muito mesmo antes da recorrência dele, que nunca envelheceria ao lado do Augustus Waters.
Mas ao pensar na Lidewij e em seu namorado, eu me senti roubada. Era muito provável que eu nunca mais fosse ver o oceano de uma altura de trinta mil pés de novo, uma distância tão grande que não dá nem para
distinguir as ondas, nem nenhum barco, de um jeito que faz o oceano parecer um enorme e infinito monólito. Eu poderia imaginá-lo. Eu poderia me lembrar dele. Mas não poderia vê-lo de novo, e me ocorreu que a
ambição voraz dos seres humanos nunca é saciada quando os sonhos são realizados, porque há sempre a sensação de que tudo poderia ter sido feito melhor e ser feito outra vez.
E mesmo se você conseguir chegar aos noventa anos, deve dar essa mesma sensação — embora eu inveje as pessoas que têm a oportunidade de comprovar isso. Mas, pensando bem, eu já tinha vivido o dobro do
tempo que a filha do Van Houten. O que ele não teria dado para ter uma filha morta aos dezesseis anos…
De repente, a mamãe estava de pé entre mim e a TV, as mãos cruzadas nas costas.
— Hazel — ela disse.
Seu tom de voz era tão grave que achei que algo estava errado.
— Sim?
— Você sabe que dia é hoje?
— Não é meu aniversário, é?
Ela riu.
— Ainda não. Hoje é dia quatorze de julho, Hazel.
— É o seu aniversário?
— Não… — É o aniversário do Harry Houdini?
— Não…
— Cansei de tentar adivinhar, sério.
— É O DIA EM QUE SE COMEMORA A QUEDA DA BASTILHA!
Ela levou os braços à frente do corpo, revelando duas bandeirinhas de plástico da França e agitando-as entusiasticamente. — Isso parece coisa inventada. Tipo o Dia da Consciência do Cólera. — Garanto a você, Hazel: o dia da Queda da Bastilha não é uma invenção. Você sabia que há exatamente duzentos e vinte e três anos o povo da França invadiu a prisão da Bastilha para se armar e lutar por sua liberdade?
— Uau — falei. — Nós deveríamos mesmo comemorar esta data tão importante.
— Acontece que eu acabei de combinar com seu pai um piquenique no Holliday Park.
Ela nunca se cansava de tentar, a minha mãe. Empurrei o sofá com a mão e me levantei. Juntas reunimos alguns ingredientes para sanduíches e achamos uma cesta de piquenique empoeirada no armário do corredor.


* * *


O dia estava, tipo, lindo, finalmente verão de verdade em Indianápolis, quente e úmido — o tipo de clima que fazia você se lembrar, depois de um longo inverno, que ainda que o mundo não tivesse sido feito para os seres humanos, nós tínhamos sido feitos para o mundo. O papai estava esperando por nós, de terno bege, de pé na vaga para pessoas com deficiência, digitando em seu smartphone. Ele acenou para nós enquanto estacionávamos e depois me abraçou.
— Que dia! — ele disse. — Se morássemos na Califórnia, todos os dias seriam assim.
— É, mas aí você não daria valor a eles — minha mãe falou.
Ela estava errada, mas eu não a corrigi.
Acabamos colocando nossa toalha ao lado das Ruínas, o estranho retângulo de ruínas romanas plantado no meio de um campo em Indianápolis. Não são ruínas de verdade: são, tipo, uma recriação escultural de ruínas construída oitenta anos atrás, mas tinham sido tão malcuidadas que acabaram meio que virando ruínas de verdade por acidente. O Van Houten iria gostar das Ruínas. O Gus também.
Então nos sentamos à sombra das Ruínas e fizemos uma ‚boquinha‛. — Você quer passar filtro solar? — a mamãe perguntou.
— Não, obrigada.
Dava para ouvir o vento balançando as folhas, e naquele vento viajavam os gritos das crianças no playground, a distância, descobrindo como continuar vivas, como percorrer um mundo que não foi feito para elas ao percorrer um playground que foi.
O papai me viu observando-as e perguntou:
— Você sente saudade de correr de um lado para outro desse jeito?
— Acho que sim, às vezes.
Mas não era nisso que eu estava pensando. Só estava tentando reparar em todos os detalhes: a luz nas Ruínas arruinadas, a criancinha que mal conseguia andar descobrindo um graveto no canto do playground, minha infatigável mãe ziguezagueando a mostarda no sanduíche de peru dela, meu pai dando batidinhas no smartphone no bolso e resistindo à tentação de dar uma espiada, um cara jogando um frisbee que seu cachorro ficava correndo para alcançar e depois levar de volta para ele.
Quem sou eu para dizer que essas coisas podem não durar para sempre? Quem é o Peter Van Houten para afirmar como verdade a conjectura de que nossa labuta é temporária? Tudo o que eu sei sobre o paraíso e tudo o que eu sei sobre a morte está naquele parque: um universo elegante em movimento constante, pululando com ruínas arruinadas e crianças estridentes. Meu pai começou a balançar a mão na frente do meu rosto.
— Sintonize, Hazel. Você está aí?
— Foi mal, é, o quê?
— A mamãe sugeriu que fôssemos ver o Gus.
— Ah. Tá — falei.


* * *


Então, depois do nosso almoço no parque, fomos de carro até o Cemitério Crown Hill, o último e derradeiro local de descanso de três vicepresidentes, de um presidente, e do Augustus Waters. Subimos a ladeira e estacionamos. Os carros passavam atrás de nós na Rua 38. Foi fácil achar o túmulo do Gus: era o mais novo. A terra ainda estava amontoada. Nada de lápide por enquanto.
Não senti como se ele estivesse ali nem nada, mas, mesmo assim, peguei uma das bandeirinhas ridículas da mamãe e enfiei-a no chão, ao pé do túmulo. Talvez quem passasse por ali pensasse que o Gus tinha sido
um integrante da legião estrangeira francesa ou algum mercenário heroico.


* * *


A Lidewij finalmente escreveu logo depois das seis da tarde, enquanto eu estava no sofá assistindo ao mesmo tempo à televisão e a alguns vídeos no meu laptop. Imediatamente pude ver que havia quatro arquivos anexados ao e-mail e quis abri-los primeiro, mas resisti à tentação e li a mensagem.

Querida Hazel,

O Peter estava muito bêbado quando chegamos à casa dele esta manhã, mas, de alguma forma, isso acabou tornando o nosso trabalho mais fácil. Bas (meu namorado) o distraiu enquanto eu vasculhava o saco de lixo 
no qual ele guarda as cartas dos fãs, mas aí eu me dei conta de que o Augustus sabia o endereço do Peter. Havia uma enorme pilha de cartas na mesa de jantar, onde logo encontrei a do Augustus. Abri o envelope e vi que estava endereçada ao Peter, por isso pedi a ele que a lesse. 
Ele se recusou. 
Fiquei com muita raiva naquela hora, Hazel, mas não gritei com o Peter. Em vez disso, falei que ele devia à filha morta a leitura da carta escrita por um garoto morto. Entreguei a carta ao Peter, ele leu tudo e 
disse — e aqui o cito fielmente, palavra por palavra: "Mande a carta para a menina e diga a ela que não tenho nada a acrescentar."
Eu não li a carta, embora meu olhar tenha capturado algumas frases enquanto escaneava as páginas. Eu as anexei a este e-mail e depois vou enviá-las pelo correio para a sua casa; seu endereço ainda é o mesmo? Que Deus te abençoe e te guarde, Hazel. 

Sua amiga, 
Lidewij Vliegenthart

Cliquei e abri os quatro arquivos anexados. A letra dele estava confusa, inclinada, o tamanho variando, a cor da caneta mudando. Ele tinha escrito a carta durante vários dias, em graus de consciência variados.

Van Houten, 
Sou uma pessoa boa, mas um escritor de merda. Você é uma pessoa de merda, mas um bom escritor. Nós formaríamos uma bela equipe. Não quero lhe pedir nenhum favor, mas, se tiver tempo — e pelo que vi, você tem tempo de sobra —, fiquei me perguntando se poderia escrever um elogio fúnebre para a Hazel. Tenho algumas anotações e tudo mais, mas se você pudesse transformá-las num texto completo e coerente, e tal… Ou então só me dizer o que eu deveria escrever de forma diferente. 
O bom da Hazel é o seguinte: quase todo mundo é obcecado por deixar uma marca no mundo. Transmitir um legado. Sobreviver à morte. Todos queremos ser lembrados. Eu também. É isso o que me incomoda mais, ser mais uma vítima esquecida na guerra milenar e inglória contra a doença. 
Eu quero deixar uma marca.
Mas, Van Houten: as marcas que os seres humanos deixam são, com frequência, cicatrizes. Você constrói um shopping center medonho ou dá um golpe de Estado ou tenta se tornar um astro do rock e pensa: ‚Eles vão se lembrar de mim agora‛, mas: (a) eles não se lembram de você, e (b) tudo o que você deixa para trás são mais cicatrizes. Seu golpe de Estado se transforma numa ditadura. Seu shopping center acaba dando prejuízo. (Tá, talvez eu não seja um escritor tão de merda assim. Mas não consigo organizar minhas ideias, Van Houten. Meus pensamentos são estrelas que eu não consigo arrumar em constelações.) 
Nós somos como um bando de cães mijando em hidrantes. Nós envenenamos as águas subterrâneas com nosso mijo tóxico, marcando tudo como MEU numa tentativa ridícula de sobreviver à morte. Eu não consigo parar de mijar em hidrantes. Sei que é tolice e inútil — epicamente inútil em meu estado atual —, mas sou um animal como qualquer outro.
A Hazel é diferente. Ela anda suavemente, meu velho. Ela anda suavemente sobre a Terra. A Hazel sabe qual é a verdade: é tão provável que nós consigamos ferir o universo quanto é provável que nós o ajudemos, e é improvável que façamos qualquer uma dessas duas coisas.
As pessoas vão dizer que é triste o fato de ela deixar uma cicatriz menor, que menos pessoas se lembrem dela, que ela tenha sido muito amada mas não por muita gente. Mas isso não é triste, Van Houten. É 
triunfante. É heroico. Não é esse o verdadeiro heroísmo? Como dizem os médicos: em primeiro lugar, não cause dano ou mal a alguém. 
Os verdadeiros heróis, no fim das contas, não são as pessoas que realizam certas coisas; os verdadeiros heróis são os que REPARAM nas coisas. O cara que inventou a vacina contra varíola não inventou nada, na 
verdade. Ele só reparou que as pessoas que tinham varíola bovina não pegavam varíola.
Depois que a minha tomografia acendeu como uma árvore de natal, eu entrei furtivamente na UTI e vi a Hazel quando ainda estava inconsciente. Entrei andando atrás de uma enfermeira de crachá e consegui me sentar ao lado da Hazel por, tipo, uns dez minutos antes de ser pego. Eu realmente achei que ela fosse morrer antes que eu pudesse lhe contar que também ia morrer. Foi brutal: o arengar mecanizado incessante da terapia intensiva. Havia uma água cancerosa escura pingando do peito dela. Os olhos fechados. Entubada. Mas a mão dela ainda era a mão dela, ainda quente, as unhas pintadas de um azul-escuro quase preto, e eu simplesmente segurei sua mão e tentei imaginar o mundo sem nós, e por mais ou menos um segundo fui uma pessoa boa o suficiente para torcer que ela morresse e nunca ficasse sabendo que eu 
também ia morrer. Mas aí eu quis mais tempo para que pudéssemos nos apaixonar. Creio que meu desejo foi realizado. Eu deixei a minha cicatriz.
Um enfermeiro chegou e me disse que eu precisava me retirar, que visitas não eram permitidas, e eu perguntei se ela estava melhorando. O cara disse: ‚Ela ainda está fazendo água.‛ Bênção do deserto, maldição do oceano. 
O que mais? Ela é tão linda! Não me canso de olhar para ela. Não me preocupo se ela é mais inteligente que eu: sei que é. É engraçada sem nunca ser má. Eu a amo. Sou muito sortudo por amá-la, Van Houten. Não dá para escolher se você vai ou não vai se ferir neste mundo, meu velho, mas é possível escolher quem vai feri-lo. Eu aceito as minhas escolhas. 
Espero que a Hazel aceite as dela. 

Eu aceito, Augustus. 
Eu aceito.

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