sexta-feira, 17 de outubro de 2014

05h42

    Adam se foi. Ele saiu correndo, de repente, dizendo para a enfermeira Ramirez que esqueceu
alguma coisa importante e que vai voltar o mais breve possível. Ele já está do lado de fora
das portas automáticas quando a enfermeira lhe avisa que o seu turno está prestes a acabar. Na
verdade, ela já se foi, mas não sem antes informar a enfermeira que está substituindo a
rabugenta que “o rapaz com calça skinny e cabelo arrepiado” tem permissão para entrar e me
ver. Não que isso fosse realmente importante. É Willow quem está no comando agora. Ela
passou a madrugada inteira trazendo as pessoas. Depois dos meus avós e Adam, tia Patrícia
veio me ver. Depois, foi a vez da tia Diane e do tio Greg. A seguir, vieram também meus
primos. Willow anda para lá e para cá com um brilho nos olhos. Ela está tramando alguma
coisa, não sei se está trazendo todos os meus familiares para que eu tenha a força necessária
para prosseguir com a minha vida terrena ou se simplesmente está fazendo isso para que eu
possa me despedir deles. Não sei dizer.
    Agora é a vez de Kim. Pobre Kim. Ela está como se estivesse dormido numa caçamba de
lixo. O cabelo está todo desgrenhado e, na trança, há mais fios soltos do que presos. Ela está
vestindo um suéter daqueles que costuma dizer que têm “cor de cocô” porque é ao mesmo
tempo esverdeado, acinzentado e amarronzado, coisas que a mãe dela sempre comprava.
    Primeiro, Kim semicerra os olhos para mim, como se eu fosse um brilho, uma luz muito
reluzente. Mas depois, como se os seus olhos tivessem se ajustado à luz, ela decide que,
mesmo que eu esteja neste estado semelhante ao de um zumbi, mesmo que haja tubos ligados
em cada um dos orifícios do meu corpo, mesmo que o sangue tenha vazado do meu curativo e
tenha manchado o meu cobertor fino, continuo sendo a Mia e ela, a Kim. E o que Mia e Kim
mais gostam de fazer? Conversar.
Kim se ajeita na cadeira próxima à minha cama.
— E aí, como você está? — pergunta.
     Não tenho certeza. Estou exausta, mas ao mesmo tempo, a visita de Adam me deixou... sei
lá. Agitada. Ansiosa. Acordada, definitivamente acordada. Ainda que eu não tenha sentido o
seu toque, a presença dele mexeu comigo. Eu estava começando a me sentir grata pelo fato de
Adam estar aqui quando ele saiu correndo como se estivesse sendo perseguido pelo diabo.
Ele tinha passado as últimas dez horas tentando me ver, e agora que tinha finalmente
conseguido, saiu dez minutos depois de entrar. Talvez ele tenha se assustado comigo. Talvez
ele não queira lidar com esta situação. Talvez eu não seja a única pessoa patética aqui. Afinal,
passei o dia inteiro sonhando com a visita dele e quando Adam finalmente conseguiu
atravessar as portas da UTI, se eu tivesse forças, teria fugido.
— Olha, você não vai acreditar na noite maluca que tive — começa Kim.
E então, ela começa a me contar sobre tudo. Sobre a histeria da mãe dela, sobre como ela
surtou com a mãe na frente dos meus familiares, que foram muito gentis diante da situação
toda. Kim conta também sobre a briga que teve com a mãe do lado de fora do Roseland
Theater, na frente de um monte de roqueiros e punks, de como gritou com a mãe pedindo para
que ela se “controlasse e começasse a agir como uma pessoa adulta”, e depois entrou no
clube, deixando a sra. Schein em estado de choque na calçada. Em seguida, ela diz que um
grupo de caras com o cabelo fluorescente e vestindo jaqueta de couro a cumprimentaram com
um toque de mão. Ela me conta sobre o Adam, sobre a determinação dele para conseguir me
ver, sobre como foi expulso da UTI e pediu ajuda aos companheiros de música que não eram
aquele povo esnobe que ela havia julgado. Depois, Kim me contou que uma verdadeira estrela
do rock tinha vindo ao hospital só por minha causa.
     Claro que sei de quase tudo que Kim está me contando, mas ela não tem como saber. Além
disso, gosto de ouvi-la relatar os acontecimentos do dia para mim. Gosto da maneira natural
com que Kim está falando comigo, exatamente como vovó fez um pouco antes, tagarelando e
contando uma boa história, como se estivéssemos juntas na varanda da minha casa, tomando
um café (ou um Frappuccino gelado com caramelo, no caso de Kim) e colocando o papo em
dia. Não sei se depois que você morre consegue se lembrar das coisas que aconteceram com
você ainda em vida. Há um sentido meio lógico que nos faz pensar que não, não nos
lembramos. Que estar morto é como o estado em que nos encontramos antes de nascer, ou seja,
um amontoado de coisas inexistentes. Mas, para mim, pelo menos, os anos que antecederam o
meu nascimento não são um branco total. De vez em quando, mamãe e papai sempre me
contam alguma história sobre como papai fisgou o primeiro salmão com vovô, ou mamãe
recorda o show surpreendente do Dead Moon a que ela assistiu com o papai no primeiro
encontro deles, e sou tomada por uma enorme onda de déjà vu. Não apenas por aquela
sensação de já ter ouvido alguma história antes, mas porque eu a vivi. Posso ver a mim mesma
sentada na beira do rio enquanto o papai puxa o peixe rosado da água, mesmo que ele tivesse
apenas doze anos na época. Ou então, posso ouvir o feedback quando o papai tocou “D.O.A”
no X-RAY, mesmo sem nunca ter visto a Dead Moon tocando ao vivo e mesmo que o X-Ray
Café tenha fechado antes mesmo de eu nascer. Mas, às vezes, essas lembranças parecem tão
reais, tão profundas e tão pessoais que as confundo com as minhas próprias lembranças.
Nunca contei a ninguém sobre essas “lembranças”. Mamãe provavelmente diria que eu
estava lá — em formato de óvulo em um dos seus ovários. Papai brincaria dizendo que ele e
mamãe tinham me torturado tanto contando essas histórias que acabei sendo vítima de uma
lavagem cerebral. E vovó diria que talvez eu estivesse lá como um anjo antes de escolher me
tornar a filha dos meus pais.
     Mas agora eu me questiono. E também tenho esperanças. Porque, quando eu partir, quero
me lembrar de Kim. E quero me lembrar dela exatamente assim: contando uma história
engraçada, discutindo com a mãe descontrolada, sendo cumprimentada pelos punks,
conseguindo se sair bem da situação, se apegando às suas forças internas que ela nem sequer
imaginava que tinha.
     Com Adam, a história é diferente. Lembrar-me dele seria como perdê-lo de novo, e não
tenho certeza se consigo suportar isso e todo o resto.
Kim chegou à parte da “Operação distração” em que Brooke Vega e uma dúzia de punks
chegaram ao hospital. Ela me conta que antes de chegarem à UTI, estava com muito medo de
se meter em encrenca, mas que, depois que conseguiu entrar, vibrou por dentro e que, quando
o segurança a abordou, ela não sentiu medo nenhum.
— Fiquei pensando: “Qual é a pior coisa que pode acontecer? Ir para a cadeia. Mamãe ter
um ataque de histeria e eu ficar de castigo por um ano.” — Kim faz uma pausa. — Mas, depois
do que aconteceu hoje, isso não seria nada. Até ir para a cadeia seria muito mais fácil
comparado a perder você.
    Sei que Kim está me dizendo isso na tentativa de me manter viva. Provavelmente, ela nem
percebe que, de um modo estranho, seu comentário me liberta, exatamente como a permissão
do vovô. Sei que para ela, a minha morte seria algo terrível, mas também penso no que ela
disse, sobre não sentir medo e que a cadeia seria uma tarefa fácil comparada a me perder. E
com isso, sei que Kim ficará bem. A perda será uma grande dor, o tipo que não parece muito
real num primeiro momento, mas que depois consegue tirar o nosso fôlego. E o resto do último
ano dela no colégio provavelmente será uma droga — receber todo o tipo de atenção porque
perdeu a melhor amiga vai ser um saco para ela. Além do mais, sou a única amiga de verdade
que ela tem no colégio, da mesma forma que Kim também é a minha única amiga. Mas ela vai
superar isso. Vai seguir adiante e se mudar de Oregon. Vai para a faculdade, fazer novos
amigos, se apaixonar. Kim vai se tornar fotógrafa, o tipo que nunca precisa viajar de
helicóptero. E aposto que ela vai ser uma pessoa mais forte diante de situações difíceis por
causa do que ela perdeu hoje. Sinto que quando se passa por uma situação como essa, você se
torna meio que invencível.
     Sei que isso faz com que eu pareça meio hipócrita. E, se for esse o caso, será que eu não
devo ficar? Enfrentar? Talvez se eu tivesse mais prática, talvez se eu tivesse passado por
outras situações difíceis em minha vida, estaria mais preparada para seguir adiante. Não que a
minha vida tenha sido perfeita. Tive decepções, já me senti solitária, decepcionada,
enraivecida e todas aquelas coisas ruins que todo mundo sente. Mas, em se tratando de
sofrimentos de verdade, fui poupada. Nunca fui forte o suficiente para enfrentar tudo o que
teria de enfrentar se eu decidisse ficar.
     Kim está me contando agora sobre como foi ser salva por Willow da possibilidade mais
que certa de ir para a cadeia. Enquanto ela descreve como Willow assumiu o controle de toda
a situação no hospital, sua voz se enche de admiração. Imagino Kim e Willow se tornando
amigas, mesmo que haja uma diferença de vinte anos de idade entre as duas. Fico feliz ao
pensar nas duas tomando chá, ou indo ao cinema juntas, ainda unidas uma a outra por um laço
invisível de uma família que não existe mais.
Agora, Kim está enumerando todas as pessoas que estão no hospital e as que já se foram,
contando-as nos dedos:
— Os seus avós e suas tias e tios, e primos. Adam, Brooke Vega e todos os seguidores que
vieram na cola dela. Os companheiros de banda de Adam: Mike e Fitzy e Liz e a namorada
dela, Sarah, que estão lá embaixo na sala de espera desde que foram enxotados da UTI. A
professora Christie, que veio de carro até aqui e ficou metade da noite antes de voltar para
dormir algumas horinhas, tomar um banho e cuidar de uns compromissos que tinha hoje de
manhã. Henry e o bebê, que estão vindo para cá agora porque a neném acordou às cinco da
manhã e Henry ligou pra gente avisando que não aguentava mais ficar em casa. E eu e a minha
mãe — conclui Kim. — Merda. Perdi a conta de quantas pessoas são. Mas é um número
grande. E mais gente ligou perguntando se poderia vir, mas sua tia Diane pediu a elas que
esperassem. Ela diz que só nós já estamos causando muita confusão. E acho que quando ela
diz “nós” está se referindo a Adam e eu.
    Kim faz uma pausa e sorri por um segundo. Depois, ela faz um barulho estranho, alguma
coisa entre uma tosse e um pigarro. Já a vi fazendo esse barulho antes; é o que ela faz quando
está reunindo forças para mergulhar em águas mais profundas e dar de cara com as pedras ao
fundo do rio.
— Estou dizendo tudo isso por um motivo — prossegue ela. — Tem mais ou menos umas
vinte pessoas lá na sala de espera agora. Algumas são da sua família, outras não. Mas todos
nós somos a sua família agora.
Kim interrompe a fala. Inclina-se para se aproximar de mim e as mechas do seu cabelo
fazem cócegas no meu rosto. Ela me dá um beijo na testa.
— Você ainda tem uma família — sussurra.


***

     No verão passado, decidimos fazer uma festa para o Dia do Trabalho, na nossa casa. Foi uma
época agitada. Eu, na colônia de férias. Depois, fomos visitar a família da vovó, em
Massachusetts. Senti como se mal tivesse visto o Adam e a Kim durante todo o verão. Meus
pais reclamaram que fazia meses que não viam Willow, Henry e o bebê deles.
— Henry disse que ela está começando a andar — comentou papai naquela manhã.
Estávamos todos sentados na sala de estar, de frente para o ventilador, tentando não derreter.
Naquele verão, Oregon bateu o recorde de calor. Eram dez da manhã e os termômetros já
marcavam trinta e dois graus.
Mamãe olhou para o calendário.
— Ela já está com dez meses. Como o tempo passou, não é? — Depois, ela olhou para mim
e para Teddy. — Como é que pode, meu Deus? Tenho uma filha que está começando o
terceiro ano do Ensino Médio? E como é que pode, um bebezinho desse entrando na segunda
série, já?
— Eu não sou bebê — resmungou Teddy, visivelmente ofendido.
— Desculpa. A menos que seu pai e eu tenhamos outro filho, você vai ser sempre o meu
bebê.
— Outro filho? — perguntou papai com a voz alarmada.
— Ah, relaxa! Estou brincando — falou a mamãe. — Eu acho. Vamos ver como eu vou
ficar depois que a Mia for para a faculdade.
— Vou fazer oito em dezembro. Aí vou ser um homem e você vai ter que me chamar de
“Ted” — advertiu meu irmão.
— Ah é?! — Soltei um riso, fazendo o suco de laranja que eu estava tomando espirrar no
meu nariz.
— Foi isso que Casey Carson me disse — respondeu Teddy, cheio de determinação.
Meus pais e eu deixamos escapar um sorriso. Casey Carson era o melhor amigo de Teddy,
todos nós gostávamos muito dele e achávamos que os seus pais eram pessoas legais, então não
conseguíamos entender por que deram um nome tão ridículo para o filho.
— Bom, se Casey Carson acha isso — falei com uma risadinha e logo mamãe e papai
começaram a rir também.
— Qual é a graça? — questionou Teddy.
— Nada, rapazinho — respondeu papai. — É só o calor.
Papai tinha prometido a Teddy que correria pelos esguichos do gramado naquela tarde,
embora o governador tivesse pedido a toda população que economizasse água naquele verão.
O pedido irritou papai, que alegou que a população de Oregon sofre oito meses do ano com as
chuvas e que deveria ser poupada de um pedido de economia de água como esse.
— Mas é claro que podemos — falou papai. — Vamos inundar esse lugar se for preciso.
Teddy pareceu tranquilo agora.
— Se a neném já pode andar, então ela já pode correr pelo gramado comigo. Será que vão
deixar?
Mamãe olhou para o papai.
— Não é má ideia. Acho que Willow está de folga hoje.
— Podemos fazer um churrasco. Afinal, hoje é o Dia do Trabalho e torrar em frente à brasa
da churrasqueira com certeza pode ser qualificado como trabalho.
— Além disso, o freezer está cheio de carne, desde aquela vez que o seu pai comprou um
monte... — acrescentou mamãe. — Então, por que não?
— Adam pode vir? — perguntei.
— Claro. Já faz um tempo que não vemos o seu garotinho.
— Eu sei. É que as coisas estão começando a esquentar pra banda dele — expliquei.
Naquela época, eu estava entusiasmada com isso. De maneira sincera e completa. A vovó
tinha acabado de plantar a semente de Juilliard na minha cabeça, mas ela ainda não havia
criado suas raízes. Eu ainda não tinha decidido se me inscreveria ou não. As coisas com
Adam ainda não estavam estranhas.
— Isso se ele conseguir aguentar um humilde churrasco com um pessoal tapado que nem a
gente — brincou o papai.
— Bem, se ele consegue aturar uma tapada como eu, com certeza vai conseguir aturar vocês
também — afirmei, brincando. — Acho que vou convidar a Kim.
— Quanto mais gente, melhor — disse mamãe. — Vamos fazer isso aqui bombar como nos
velhos tempos.
— Quando os dinossauros ainda habitavam a Terra? — provocou Teddy.
— Isso mesmo — respondeu papai. — Quando os dinossauros habitavam a Terra e a sua
mãe e eu éramos jovens.


    Vieram mais ou menos umas vinte pessoas. Henry, Willow, o bebê; Adam, que trouxe Fitzy;
Kim, que trouxe uma prima que tinha vindo de Nova Jersey; mais uma porção de amigos dos
meus pais que eu não via há um tempão. O papai tirou a churrasqueira antiga do porão e
começou a limpá-la. Assamos a carne na brasa e, como estamos em Oregon, espetinhos de tofu
e hambúrgueres de soja não poderiam faltar. Também tinha melancia, que mantivemos num
balde com água gelada, e salada de legumes, feita com vegetais de uma fazenda de orgânicos,
trazidos por um casal amigo dos meus pais. Mamãe e eu fizemos três tortas de frutas
vermelhas que Teddy e eu tínhamos colhido. Tomamos Pepsi numa dessas garrafas antigas que
o papai tinha achado em alguma loja de antiguidades, e posso jurar que o gosto da bebida
ficou muito melhor do que a Pepsi na garrafa convencional. Talvez fosse porque estava quente
demais, ou porque a festa tinha sido organizada do nada, ou porque tudo tem um gosto melhor
no churrasco, mas foi uma daquelas refeições que você jamais esquece.
     Quando papai ligou o aspersor para Teddy e o bebê, todo mundo resolveu correr pelo
gramado. Deixamos a torneira ligada por tanto tempo que a grama suja de terra se transformou
numa poça enorme e escorregadia, e eu fiquei me perguntando se o próprio governador viria
para nos mandar desligar. Adam me puxou, rimos juntos e rolamos pelo gramado. Estava tão
quente que eu nem me preocupei em trocar de roupa, e colocar alguma coisa limpa, só
continuei me molhando toda vez que me sentia suada demais. No final do dia, meu vestido
estava duro. Teddy tinha tirado a camiseta e pintado o corpo com lama. Papai disse que ele
parecia um daqueles meninos do livro O senhor das moscas.
     Quando começou a escurecer, a maioria do pessoal foi embora para assistir à queima de
fogos na universidade ou para assistir à apresentação na cidade de uma banda chamada
Oswald Five-0. Uma porção de gente, incluindo Adam, Kim, Willow e Henry, ficou. Quando
refrescou um pouco, o papai acendeu uma fogueira no gramado e assamos marshmallows. E aí
os instrumentos musicais apareceram. O papai trouxe a bateria de dentro de casa, Henry pegou
sua guitarra no carro e Adam pegou o violão que estava no meu quarto. Todos tocaram juntos
e cantaram: músicas da banda do papai, outras da banda de Adam e músicas antigas do The
Clash e do Wipers. Teddy ficou dançando pelo gramado, as chamas da fogueira iluminando os
fios loiros do seu cabelo. Lembro-me de ter observado aquilo tudo, de ter tido uma sensação
muito boa no peito e de ter pensado: Isso é que é felicidade.
    Em um determinado momento, papai e Adam pararam de tocar e peguei os dois cochichando
sobre alguma coisa. Então os dois foram lá para dentro, para pegar mais cerveja, segundo
eles. Mas quando voltaram, vieram carregando o meu violoncelo.
— Ah, não. Nada disso. Não vou fazer nenhum concerto aqui — falei.
— Mas não queremos que você faça isso — ponderou papai. — Queremos que você toque
com a gente.
— Sem chance — retruquei.
    Adam já tinha tentado me convencer a fazer um “dueto” com ele, mas sempre recusei.
Ultimamente, ele brincava dizendo que deveríamos fazer um dueto de guitarra e violoncelo
imaginários, que era o máximo que eu me dispunha a fazer.
— Por que não, Mia? — perguntou Kim. — Não vá me dizer que é uma daquelas pessoas
esnobes que só pensam em música clássica.
— Não, não é isso — respondi, me sentindo tomada por uma onda de pânico. — Acontece
que são dois estilos muito diferentes. Não combinam.
— Quem disse? — indagou mamãe com as sobrancelhas elevadas.
— É.... Quem diria que você se transformaria numa segregacionista musical? — brincou
Henry.
A Willow revirou os olhos para Henry e se virou para mim.
— Por favor, querida — pediu ela enquanto embalava a filha em seu colo, tentando fazê-la
dormir. — Nunca mais ouvi você tocar.
— Vamo aê, Mi! — insistiu Henry. — Só tem gente da família aqui.
— Concordo! — lançou Kim.
Adam segurou a minha mão e acariciou o interior do meu pulso.
— Por mim. Quero muito tocar com você. Pelo menos uma vez.
     Eu estava prestes a balançar a cabeça para reafirmar que não havia lugar para o meu
violoncelo em meio àquelas guitarras estridentes, nem no mundo do punk rock. Mas então
olhei para minha mãe, que estava sorrindo para mim com sarcasmo, como se quisesse me
desafiar, para meu pai, que estava tamborilando o dedo no cachimbo, fingindo indiferença
para não me pressionar, e para Teddy, que saltitava — embora considere que isso era o efeito
dos marshmallows e não porque ele tivesse a menor intenção de me convencer a tocar. Além
do mais, Kim, Willow e Henry, todos olhando para mim como se aquilo realmente fosse
importante, e Adam, aparentando estar tão impressionado e orgulhoso de mim como sempre
ficava quando me ouvia tocar.
     E eu estava com um pouco de medo de pagar mico, de não conseguir me encaixar entre eles,
de acabar tocando mal. Mas todos me olhavam tão incisivamente, querendo que eu me juntasse
a eles, e foi aí que percebi que tocar mal não seria a pior coisa que poderia acontecer.
Então toquei. E por incrível que pareça, o violoncelo não soou nada mal em meio àquelas
guitarras. Para ser bem sincera, o resultado foi bastante surpreendente.

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