sexta-feira, 17 de outubro de 2014

07h16

    Amanheceu. E dentro do hospital, há um tipo de aurora diferente, um farfalhar de cobertores,
um esfregar de olhos. De certa forma, o hospital nunca dorme. As luzes permanecem acesas e
as enfermeiras, acordadas. Apesar de ainda estar escuro lá fora, pode-se dizer que as coisas
começam a despertar. Os médicos estão de volta, puxando as minhas pálpebras para cima,
colocando a luz daquela lanterna sobre mim, franzindo as sobrancelhas enquanto escrevem no
meu prontuário como se eu os tivesse decepcionado.
     Não me importo mais. Estou cansada disso tudo e sei que logo tudo vai acabar. A assistente
social também voltou. Parece que a noite de sono não surtiu muito efeito. Seus olhos
continuam pesados, o cabelo, meio ondulado, meio desgrenhado. Ela lê o meu prontuário e
recebe informações das enfermeiras sobre a minha noite instável, o que faz com que a
assistente social pareça ainda mais cansada. A enfermeira de pele negra-azulada também está
de volta. Ela me cumprimenta, dizendo o quanto está feliz em me ver de novo, no quanto
pensou em mim na última noite, desejando que eu estivesse aqui. Então, ela percebe a mancha
de sangue no meu cobertor e emite um tsc, tsc, tsc antes de sair às pressas para trazer um
cobertor limpo.
     Depois que Kim saiu, não recebi muitas outras visitas. Acho que Willow não tem mais
ninguém para trazer até aqui. Pergunto-me se todas as enfermeiras sabem dessa história de que
sou eu quem tem de tomar a decisão. A enfermeira Ramirez com certeza sabe. E acho que a
enfermeira que está comigo agora também, a julgar pela forma como me parabeniza por eu ter
sobrevivido à noite. E Willow se comporta como se soubesse também, já que fez questão de
trazer todo mundo aqui. Gosto muito dessas enfermeiras. Espero que elas não levem a minha
decisão para o lado pessoal.
     Estou tão cansada agora que mal consigo piscar os olhos. É só uma questão de tempo, e uma
parte de mim se questiona por que estou tentando adiar o inevitável. Mas sei por quê. Estou
esperando Adam voltar. Embora pareça que ele se foi para sempre, provavelmente faz apenas
uma hora. E ele pediu para eu esperar, então é isso que vou fazer. É o mínimo que posso fazer
por ele.
     Meus olhos estão fechados, então eu o ouço antes de vê-lo. Ouço sua respiração rápida e
ofegante. Adam respira como se tivesse acabado de correr numa maratona. Então sinto o
cheiro do suor dele, um aroma agradável e almiscarado que, se eu pudesse, colocaria dentro
de um vidro e usaria como perfume. Abro os olhos. E Adam fecha os dele. Mas suas
pálpebras estão rosadas e inchadas, então sei muito bem o que ele andou fazendo. Foi por isso
que ele saiu? Para chorar sem que eu o visse?
    Ele não senta na cadeira. Desmorona sobre ela feito uma peça de roupa que atiramos no
chão depois de um dia longo. Adam cobre o rosto com as mãos e respira fundo, tentando se
manter firme. Depois de um minuto, ele põe as mãos sobre o colo.
— Só quero que ouça — diz ele com uma voz que parece estilhaçada.
Abro bem os meus olhos, ajeito o corpo da melhor forma possível. E ouço.
— Fique. — Com essa única palavra, a voz de Adam falha, mas ele engole a emoção e
prossegue. — Não há como descrever o que aconteceu com você. Não tem nem um ponto
positivo nisso. Mas existe um motivo para você viver. E não estou falando de mim. É só que...
não sei. Talvez eu esteja falando besteira. Sei que estou em estado de choque. Sei que ainda
não digeri o que aconteceu com os seus pais, com o Teddy... — Quando diz “Teddy”, a voz
dele falha de novo e uma avalanche de lágrimas desaba e escorre pelo rosto de Adam. E eu
penso: Eu te amo.
Ouço-o inspirar para tentar se acalmar. Então, ele continua:
— Tudo que consigo pensar é em como vai ser uma merda se a sua vida acabar agora. Sei
que a sua vida vai ser uma droga de qualquer jeito, depois do que aconteceu. E não sou tão
idiota assim pra achar que posso desfazer isso ou que qualquer outra pessoa possa. Mas não
consigo me conformar com a ideia de que você não vai envelhecer, de que não vai para a
Juilliard tocar o violoncelo na frente de uma plateia enorme para eles ficaram tão arrepiados
quanto eu fico toda vez que vejo você pegar o seu arco, toda vez que vejo você sorrir pra
mim. Se você ficar, vou fazer tudo o que você quiser. Vou sair da banda e vou para Nova
York com você. Mas se quiser que eu saia da sua vida, vou fazer isso também. Estava
conversando com a Liz e ela disse que, talvez, voltar para a sua antiga vida fosse doloroso
demais, e que talvez seja mais fácil para você simplesmente apagar todos nós da sua vida. Vai
ser uma barra pesada para mim, mas posso aguentar. Aceito perder você desse jeito, se eu não
perdê-la hoje. Vou deixá-la livre. Se você ficar.
E então, Adam se descontrola. Ele explode em soluços como socos numa pele macia.
    Fecho os olhos. Cubro as minhas orelhas. Não posso ver isso. Não posso ouvir isso.
Mas então, não é mais o Adam que escuto agora. É aquele som, um gemido baixo que num
instante alça voo e se transforma em algo doce. É o violoncelo. Adam colocou os fones nos
meus ouvidos mortos e o iPod sobre o meu peito. Ele pede desculpas, diz que sabe que essa
não é a minha favorita, mas que foi o melhor que ele conseguiu fazer. Ele aumenta o volume
para que eu possa ouvir a música flutuando sobre o ar da manhã. Depois, segura a minha mão.
É Yo-Yo Ma. Andante con poco e moto. O piano baixo soa quase como um aviso. E então,
entra o violoncelo, como um coração sangrando. E sinto como se algo dentro de mim
explodisse.
    Estou sentada ao redor da mesa de café da manhã com a minha família, tomando café
quentinho, rindo do bigode que o achocolatado formou perto da boca do Teddy. Lá fora, está
nevando.
Estou visitando um cemitério. Três túmulos debaixo de uma árvore, numa colina, com vista
para um rio.
Estou deitada ao lado de Adam, com a cabeça sobre o peito dele, num banco de areia, bem
perto do rio.
Ouço as pessoas dizendo a palavra órfã e percebo que estão falando de mim.
Estou passeando pelas ruas de Nova York com a Kim, e as sombras dos arranha-céus
recaem sobre o nosso rosto.
Estou segurando Teddy no colo, fazendo cócegas nele e ele curva o corpo de tanto rir.
Estou sentada com meu violoncelo, o mesmo que mamãe e papai me deram depois do meu
primeiro recital. Meus dedos acariciam a madeira e a cravelha, que com o tempo e o uso
ficaram gastos. Meu arco está posicionado sobre as cordas. Olho para minha mão agora,
esperando para começar a tocar.
Estou olhando para a minha mão, que está envolvida pela mão de Adam.
    Yo-Yo Ma continua tocando, e sinto como se o piano e o violoncelo entrassem no meu
corpo, do mesmo jeito que o soro e as transfusões de sangue fizeram. E as lembranças da
minha vida como era e os flashes do que poderia ser continuam vindo cada vez mais rápidos e
fortes. Sinto como se não pudesse acompanhá-los, mas eles continuam vindo e tudo se choca,
até que não aguento mais. Até que não consigo mais ser esta daqui nem por um segundo mais.
Vejo um clarão ofuscante, sinto uma dor horrível que me rasga por um momento intenso, um
grito silencioso do meu corpo quebrado. Pela primeira vez, posso sentir o quanto seria
extremamente agonizante ficar.
    Mas então, sinto a mão de Adam. Não é só uma simples sensação, sinto o toque dele
mesmo. Não estou mais toda encolhida na cadeira. Estou deitada no meu leito do hospital, de
novo com o meu próprio corpo.
    Adam está chorando e eu choro também, em algum lugar dentro de mim porque finalmente
posso sentir as coisas. Não estou sentindo apenas a dor física, mas uma dor por tudo que
perdi, e é algo tão profundo e catastrófico que vai deixar uma cratera dentro de mim que
jamais poderá ser preenchida. Mas agora também consigo sentir tudo o que tenho na minha
vida, e isso inclui tudo o que perdi bem como o desconhecido que a vida poderá me trazer. É
demais para mim. Os sentimentos se acumulam, ameaçando escancarar o meu peito. A única
forma de sobreviver a isso é me concentrar na mão de Adam, que está segurando a minha.
E, de repente, tudo que preciso é segurar a mão dele mais do que já precisei de qualquer
outra coisa na vida. Não apenas sentir que ele segura a minha mão, mas segurar a dele
também. Reúno cada gota de energia na minha mão direita. Estou fraca, e fica difícil fazer
isso. É a coisa mais difícil que terei de fazer. Junto todo o amor que já senti, toda a força que
vovó, vovô, Kim, as enfermeiras e Willow me deram. Junto todo o ar que mamãe, papai e
Teddy me dariam se pudessem. Concentro todas as minhas forças nos meus dedos e na palma
da minha mão direita como se fossem um raio de laser. Imagino a minha mão acariciando o
cabelo de Teddy, pegando o arco posicionado sobre o violoncelo e entrelaçada com a mão do
Adam.
E então aperto.
Depois relaxo, sentindo-me exausta, em dúvida se realmente fiz aquilo. Qual é o significado
disso. E se foi importante.
Então sinto a mão do Adam apertar ainda mais a minha, e é como se a sua mão pudesse
suportar o meu corpo inteiro. Como se pudesse me levantar da cama naquele momento. Então,
ouço sua respiração profunda, e depois a sua voz. É a primeira vez que realmente posso ouvi-lo.
— Mia? — pergunta ele.

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